A Maria José Pinho, 52 anos, sempre fizeram “confusão” os enterros, “as pessoas irem para debaixo da terra e serem comidas por vermes”, diz à VISÃO. Para esta pequena empresária, a alternativa da cremação também tem pouco sentido. “Passar a cinzas vai dar quase ao mesmo.” Há cerca de três anos, descobriu a opção para si certa: preencheu um formulário e entregou-o na Unidade de Anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), através do qual faz a doação do seu corpo, após a morte, ao ensino clínico e à investigação científica.
Coordenadora daquela unidade da FMUP, Dulce Madeira dá conta de uma tendência adquirida, de que Maria José Pinho é um exemplo. “Temos o dobro das doações vindas de mulheres, com idades entre os 50 e os 70 anos, relativamente às que recebemos de homens”, revela. Com uma média anual de 120 doações, número que “tem vindo a aumentar progressivamente” nos últimos tempos e se mostra suficiente para as necessidades, também há, na lista da Unidade de Anatomia da FMUP, dadores com menos de 20 anos e outros com mais de 80, de ambos os sexos.
Mas como explicar tamanha predominância de mulheres doadoras? Dulce Madeira arrisca a existência de uma “maior sensibilidade” no feminino. São mulheres de meia idade, altura em que “começam a ficar doentes ou a pensar no futuro” – nos filhos, por exemplo, que, se tiverem um problema de saúde, querem ver tratados por médicos bem treinados.
Houve um contexto para Maria José Pinho decidir doar o seu corpo à Ciência. Primeiro, foi o cancro do pai, de que veio a morrer há meses, aos 83 anos, após resistir cinco anos à doença. Depois, foram os lamentos do filho mais velho, de 29 anos e investigador bioquímico, e de um seu amigo, jovem médico, sobre o défice de cadáveres para manipularem e se aperfeiçoarem.
Tudo junto serviu para convencer António Silva, 55 anos e marido de Maria José Pinho, a também inscrever-se, recentemente, como doador na Unidade de Anatomia da FMUP. Residente em Paredes, o casal detém uma pequena empresa de eletrónica de manutenção na área têxtil, e está agora igualmente unido na lista da FMUP.
Entre amigos mais próximos, a decisão de António Silva tem causado estupefação. “Como é que, numa situação dessas, se faz o luto e se chora por alguém?”, perguntou-lhe um, desconcertado. “Até dentro de casa se pode chorar por alguém”, respondeu-lhe o técnico de eletrónica, que ainda acrescentou ir “dar vida ao corpo depois de morto”. E, claro, surge a questão do retalho a bisturi. É o momento de António Silva gracejar: “Não estarei minimamente preocupado com isso… depois de morto.”
Dulce Madeira diz que há agora uma novidade: dadores que afirmam a vontade de, após falecerem, serem imediatamente trasladados para a Unidade de Anatomia da FMUP, prescindindo das exéquias fúnebres. Este ainda é um assunto para ser pensado e falado na casa de Maria José Pinho e António Silva. A conversa é sobretudo difícil com o filho mais novo, de 23 anos, tatuador de profissão. Aceitou a decisão dos pais, mas para já não quer prolongar o tema.
‘PEÇAS’ COM MAIS DE 20 ANOS
Será, ainda assim, com um funeral simbólico, no próximo dia 15, no cemitério de Agramonte, na Boavista, Porto, que a FMUP homenageará os que “em vida doaram o seu corpo morto”. Pelas 16 horas, informa Dulce Madeira, “deslocamo-nos ao Serenarium, um espaço aberto e relvado onde estão depositadas as cinzas dos dadores da FMUP, paramos todas as nossas atividades, durante 30, 40 minutos, e agradecemos respeitosamente o ato de generosidade que tiveram ao entregar o seu cadáver”.
Os métodos de conservação dos corpos revelam-se de tal forma eficazes que, diz a especialista, “temos algumas peças no nosso Teatro Anatómico com mais de 20 anos” e que continuam a ser manipuladas pelos estudantes. Mas nos cadáveres utilizados para pós-graduação, “que muitas vezes tem como objetivo treino de abordagens e de técnicas cirúrgicas, a duração é relativamente limitada”.
Dulce Madeira não vê como a Medicina podia evoluir sem a doação de corpos. “Na pré-graduação é fundamental”, elucida. “Não há modelos anatómicos que se possam comparar, ou sequer aproximar, à realidade da complexidade do corpo humano”. E exemplifica: “Pela simples observação, os nossos estudantes conseguem compreender quanto a ‘normalidade’ pode ser diversa, dependendo da pessoa em questão. Isto é crucial porque, enquanto médicos, não encontrarão dois pacientes iguais.”
Na pós-graduação, pelo seu lado, “é fundamental relembrar o que já se aprendeu”. Esta área da formação, destaca a especialista, “está em absoluto crescendo e cada vez mais nos é solicitada colaboração”.
Pelo “Teatro Anatómico” desfilam exercícios de Ortopedia, Cirurgia Geral, Cirurgia Vascular ou de Ginecologia, mas também outros de foro mais médico, como Anestesia e Intensivismo. Há de ser preciso algum estômago – dizemos nós.
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