Para responder a esta questão, a Fundação Francisco Manuel dos Santos trouxe a Portugal Cas Mudde, politólogo holandês radicado nos Estados Unidos e um dos maiores especialistas neste tema. Numa conferência na Culturgest, onde apresentou o livro Populismo: Uma brevíssima introdução, recentemente editado pela Gradiva com o apoio da FFMS, o autor não podia ter sido mais explícito.
1- O populismo é uma ideologia política de baixa densidade, pouco desenvolvida, que trata apenas um conjunto limitado de questões. Assim, quase todos os agentes populistas adoptam uma ideologia hospedeira, que lhes confere mais substância. Isto explica a heterogeneidade de populismos disponíveis. Há populismos de direita e populismos de esquerda, conservadores e progressistas, religiosos e seculares. A maioria dos populistas de esquerda adere a alguma forma de socialismo, um fenómeno observável em diversos países da América do Sul, enquanto os populistas de direita tendem a ser nacionalistas, como se verifica em vários países europeus.
2- Os agentes populistas consideram que a sociedade está dividida em dois grupos homogéneos e antagónicos: a “elite corrupta” e o “povo puro”. A ideologia hospedeira acaba por influenciar a forma como estes grupos são definidos. Para dar dois exemplos, os membros do Tea Party consideram que os Estados Unidos são governados por “liberais degenerados” da Costa Leste, consumidores de latte e importadores de Volvos, em detrimento das “pessoas reais” que vivem na América profunda (the heartland), bebem café “normal” e conduzem automóveis americanos. Já Evo Morales, Presidente da Bolívia, distingue frequentemente “o povo”, indígena, onde se inclui, da “elite” branca.
3- Por paradoxal que pareça, o populismo é simultaneamente entusiasta e inimigo da democracia. É democrático ao defender intransigentemente a regra da maioria. E é visceralmente contra a democracia (liberal) ao rejeitar todos os freios e contrapesos do estado de direito democrático, que contempla instituições independentes que garantem a protecção dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a protecção das minorias. Para um populista é portanto inaceitável que a vontade do povo (puro), da maioria, seja limitada. Daí que o populismo redunde frequentemente em democracias iliberais.
4- Os políticos populistas subscrevem a crítica de Rousseau ao governo representativo, entendendo-o como uma forma aristocrática de poder. Existe por isso uma certa afinidade entre o populismo e a democracia directa. A política é vista como a aplicação da vontade geral. Esta, por ser infalível e absoluta, implica a marginalização de todos aqueles que não pertencem ao povo, legitimando ataques autoritários e iliberais a todos os que alegadamente ameacem a sua homogeneidade.
5- Há duas ideologias diametralmente opostas ao populismo: o elitismo e o pluralismo. O elitismo partilha com ele a divisão maniqueísta da sociedade. Escusado será dizer que para o elitista o grupo virtuoso já não é o povo – que é visto como vulgar e perigoso – mas a elite, que julga culturalmente, intelectualmente e moralmente superior àquele. Já o pluralismo entende que a sociedade está repartida numa miríade de grupos sociais e que a política deve reflectir os interesses e os valores desses grupos, recorrendo ao compromisso e ao consenso. O objectivo primordial é evitar que facções específicas, de qualquer índole, imponham a sua vontade às restantes.
6- Os líderes populistas assumem diferentes estilos. Mas todos projectam uma imagem cuidadosamente elaborada da vox populi. A distinção entre povo e elite não se baseia em critérios socioeconómicos, mas antes em aspectos morais. Tal permitiu a Donald Trump – um dos empresários mais ricos dos Estados Unidos – apresentar-se ao eleitorado como outsider (político) e logo necessariamente impoluto, enquanto descrevia Hillary Clinton como parte da elite de Washington, forçosamente alheada das necessidades básicas do povo americano. Por outras palavras, Trump utilizou a sua fortuna para atestar a sua independência em relação a “interesses particulares” e a experiência política de Hillary como demonstração da conivência da adversária com um sistema político (supostamente) caduco e iníquo.
7- O populismo existe em regimes democráticos e em regimes autoritários. Mas enquanto ideologia que exalta a vontade popular, floresce mais facilmente nas democracias eleitorais, tirando partido das tensões intrínsecas à democracia liberal, que se propõe assegurar um equilíbrio harmonioso entre o governo da maioria e os direitos da minoria. O que constitui uma tarefa árdua, quase quimérica.
Grande parte dos especialistas afirma que o populismo representa um perigo para a democracia. Cas Mudde considera que o populismo per se não é bom nem mau para o sistema democrático. Dependendo do poder eleitoral e do contexto em que surge, pode funcionar como ameaça ou como correctivo. O populismo tende a desempenhar um papel positivo na promoção de uma democracia eleitoral, minimalista, e a prestar um péssimo serviço ao desenvolvimento de uma democracia liberal. Por um lado, ao defender a soberania popular, tende a instigar a democratização de regimes autoritários. Por outro, ao minar a confiança nas instituições, acaba por diminuir inevitavelmente a qualidade das democracias liberais.
O populismo é um fenómeno moderno, que despontou com especial dinamismo nos Estados Unidos no final do século XIX e que não desapareceu desde então. Dada a importância assumida por alguns agentes populistas nas últimas décadas e a sua relativa persistência em diversos continentes, há quem defina o século XXI como a “era do populismo”. Segundo Cas Mudde, os peritos têm andado excessivamente preocupados com a oferta populista – com os seus líderes e ideários – esquecendo que estes não teriam tanto apoio se a população não concordasse com boa parte da sua retórica. É portanto fundamental combater a procura populista. O raciocínio é simples: se o solo for estéril, a semente do populismo não poderá medrar.