Lourenço veio ao mundo a 7 de junho. Mas a história deste bebé, que ficou conhecido por bebé-milagre por nascer 15 semanas depois da morte da mãe, começou muito antes para o pediatra Gonçalo Cordeiro Ferreira. Foi a 21 de fevereiro, domingo, que o telefone daquele médico e dos outros seis membros da Comissão de Ética do Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC) tocou. A direção do Hospital de São José estava perante algo inédito: um feto de 17 semanas tinha sobrevivido à morte cerebral da mãe. Era preciso um parecer o quanto antes: desligavam-se as máquinas, matando o feto, ou mantinha-se a mãe artificialmente ligada à vida por meios médicos, para tentar que umas semanas depois um bebé nascesse?
Cada membro da Comissão de Ética teve um tempo para pesquisar e refletir. Na manhã seguinte, reuniram-se. Não tinham muitos elementos na equação. Não sabiam qual seria a vontade da família, se o feto continuaria a crescer saudável nem tampouco podiam ter certezas de que o bebé viria efetivamente a nascer. Sabiam apenas que Sandra Pedro recusara terminantemente uma interrupção voluntária de gravidez, sugerida devido às complicações de saúde que se adivinhavam, na sequência de um regresso de um tumor nos rins. Queria ser mãe. E queria que este seu segundo filho se chamasse Lourenço.
Perante as circunstâncias, a Comissão de Ética decidiu por unanimidade: que fosse cumprida a sua vontade. Independentemente da vontade dos familiares, a equipa médica deveria manter Sandra ligada às máquinas. O hospital contactou, então, o Ministério Público (MP), pedindo que o feto fosse tratado em moldes semelhantes aos de uma criança em risco. Estava vivo, de boa saúde, mas naquele momento não conseguiria sobreviver fora da barriga da mãe. Era indefeso, e como tal deveria ser protegido pelo Estado. O MP concordou. E o caso só não ficou dependente da decisão de um juiz porque a família de Sandra Pedro e o pai de Lourenço acabariam por concordar com a vontade dos médicos: fazer tudo para que a criança sobrevivesse.
Gonçalo Cordeiro Ferreira, à data da decisão vice-presidente, e hoje presidente, da Comissão de Ética, admite que “manter em vida alguém que está morto vai contra todos os princípios médicos”. Mas está convencido de que do ponto de vista ético não seria possível tomar outra decisão, pois “estava em causa um bem maior”: “Uma comissão de ética preocupa-se com alguns imperativos legais, mas a ética está acima da lei. Estávamos perante um bem jurídico, indefeso, que alguém precisava de proteger. Os pais não são donos dos filhos. É por isso que quando há um abuso o Estado intervém. A decisão ficou mais fácil porque sabíamos que aquela mãe queria prolongar a gravidez. Qual era a alternativa? Ou prolongávamos a vida daquela senhora – o que é de facto um problema ético – ou deixávamos a natureza seguir o seu curso e o feto estava condenado à morte.”
Se a família não tivesse concordado com a equipa médica e o caso tivesse seguido para tribunal, qualquer um concordaria que o direito à vida de um feto de 17 semanas se sobrepunha ao resto? Para o constitucionalista Pedro Bacelar de Vasconcelos, não podendo Sandra Pedro expressar a sua vontade, deveria ser o pai da criança, ou a família da mulher, a terem a palavra final. “Se fosse numa fase adiantada da gravidez, com um ser completamente formado, esta questão nem se colocaria. Mas aqui eram precisos sacrifícios para salvar a vida de uma criança. Não me parece admissível que uma equipa médica ou um tribunal tenham o direito de se sobrepor à vontade dos familiares. Isso é pôr os interesses da experiência científica em cima do quadro humano.” O especialista reconhece que “todos ficamos contentes com a capacidade de a ciência evoluir e com a continuação da vida da mãe naquela criança”, mas defende que os familiares deviam ter sido os primeiros a ser contactados: “Não é papel da ciência pôr no mundo seres humanos por sua iniciativa.”
O atual presidente da Comissão de Ética, também diretor de pediatria médica do Hospital de Dona Estefânia , explica à VISÃO que a família só não foi consultada em primeiro lugar porque “o tempo da ética não é o tempo da vida corrente”: era preciso decidir, com relativa urgência, se se mantinha Sandra numa espécie de vida artificial. Depois, todos ficaram felizes quando perceberam que a família cooperava. Mas ninguém esqueceu o custo emocional de adiar um funeral quatro meses. E o pediatra admira a coragem dos familiares: “Há um ser que está morto e que não podem enterrar, sem ter a certeza de que outro vai nascer. Custa muito saber que, quando um nascer, estar-se-á perante o apagar definitivo do outro.” A propósito, o parecer da Comissão de Ética reconhecia que o que estava em causa era “uma terapia experimental”, e perguntava a dado momento: não conhecendo o resultado, “temos o direito de prolongar o sofrimento daquela família?”
Cada juiz, sua sentença
A lei não dá respostas claras. O vazio legal é tal que nenhum jurista contactado pela VISÃO conseguiu resposta para todas as dúvidas. Uns sublinharam estar perante questões que são mais do domínio da ética médica do que do Direito. Outros não têm dúvida de que esta história se poderá transformar num caso prático a ser analisado pelos futuros juristas na universidade. “É por isso que se costuma dizer que o Direito tem resposta para tudo, mesmo quando não tem”, diz o advogado António Quaresma. Não havendo um decreto-lei que regule a decisão do hospital, restaria analisar o Código Civil, o Código Penal e a própria Constituição. E inevitavelmente esbarrar-se-ia na questão: que direitos tem afinal um feto? Por lei, só depois do nascimento se adquire a chamada personalidade jurídica, mas os que ainda não nasceram já são “sujeitos de alguns direitos”, lembra aquele especialista em direito da família. Por exemplo, alguém que formalmente ainda nem tem nome pode receber uma doação quando ainda está na barriga da mãe, assim como um pai, por temer uma morte próxima, pode perfilhar um filho antes de aquele nascer.
O Código Civil também dita que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física e moral”. Tem ou não esses direitos quem ainda não nasceu? A questão tem dividido a doutrina. Uma mulher recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça, em 2014, para exigir de uma seguradora uma indemnização idêntica para os dois filhos pela morte do pai num acidente. Os juízes consideraram que o tratamento jurídico diferenciado dos irmãos, por um deles ter 16 meses à data da morte do pai e o outro só vir a nascer 18 dias depois, “repugnava o mais elementar sentido de justiça”: “O nascituro não é simples massa orgânica.” Outra mulher, que perdeu um filho num acidente aos nove meses de gravidez, já levara o seu caso ao Supremo, em 2008, que decidiu de forma oposta. Dessa vez os juízes decidiram que “numa sociedade pluralista, multicultural e agnóstica” não era possível adotar “um conceito de dignidade humana, de origem metafísica, segundo o qual o ser humano tem uma essência espiritual desde o momento da conceção”.
O desembargador Eurico Reis admite que para alcançar uma decisão favorável num caso destes seriam necessários juízes com “especial sensibilidade”. O MP teria de encontrar argumentos, “invocando o superior interesse da criança”: “O Código Civil dá direitos aos nascituros e o Penal protege a vida intrauterina. Por estas duas vias existe uma tutela jurídica do feto, um interesse legítimo em proteger aquela essência”, defende. O juiz da Relação de Lisboa compreenderia até que o hospital avançasse para tribunal perante uma eventual recusa da família em prosseguir com o tratamento. O mesmo princípio já foi aplicado em casos de mulheres grávidas que, por força da religião, se recusam a receber transfusões de sangue.
O procurador Rui Cardoso põe a questão de outra perspetiva: não estaria o hospital a cometer um crime se interrompesse uma gravidez, que podia ser viável, contra a vontade da mãe? A lei apenas permite a interrupção por vontade da mulher até às dez semanas, e em fases posteriores (não contando com casos de violações) apenas por decisões médicas. Diz o médico Gonçalo Cordeiro Ferreira que, se Sandra Pedro tivesse chegado ao hospital com um embrião com menos de dez semanas, a hipótese de avançar com a gravidez nem se colocaria – precisamente por não ser viável. Da mesma maneira, explica, se a meio do percurso de Lourenço se tivessem detetado malformações, tudo seria novamente equacionado. A decisão de manter Sandra ligada às máquinas não era irreversível.
E Lourenço, deve vir a conhecer as circunstâncias em que nasceu? E em que momento? Para o pediatra, aquela criança “pode e deve perceber que teve muita gente a lutar por ela, a começar pela mãe”. Idealmente aos dez, doze anos, idade em que teria capacidades para compreender. “É importante que perceba que não conheceu a voz de uma mãe, porque cresceu dentro de uma mãe, sem ter mãe, mas tendo muitas mães por fora, devido aos cuidados de uma equipa habituada a lutar pelos vivos e não pelos mortos.”