Será que os cidadãos da União Europeia (UE) são ricos e mal agradecidos? A acreditar nas estatísticas, e na opinião que eles dizem ter sobre a organização criada há exatamente seis décadas por um punhado de dirigentes visionários, a resposta parece ser simples e afirmativa. A maioria dos 515 milhões de habitantes do espaço comunitário tem uma opinião negativa sobre o projeto europeu e em alguns países as taxas de reprovação atingem valores alarmantes – caso dos gregos com 71% ou dos franceses com 61%. Mas, nesse caso, como se compreende que os estados europeus monopolizem tudo quanto seja ranking internacional sobre desenvolvimento e bem-estar? No mais recente relatório mundial sobre a felicidade, promovido pelas Nações Unidas desde 2012 e conhecido esta segunda-feira, 20, aparecem 13 países europeus entre os 20 mais bem classificados – e 10 deles pertencem à UE. Algo idêntico se poderia concluir com o Índice de Desenvolvimento Humano ou as diferentes tabelas e listas globais sobre rendimentos e outros indicadores sociais.
Assim sendo, como se compreende o aparente avanço do europessimismo? Um dos grandes escritores do século XX, o francês Albert Camus, falecido três anos depois da assinatura do tratado fundador da CEE e da Euratom (Comunidade Europeia de Energia Atómica), costumava dizer que o grande segredo do Velho Continente é saber ultrapassar as suas contradições e ter criado “uma civilização de que todo o mundo depende mesmo quando a rejeita”: “É por isso que não acredito numa Europa unificada sob o peso de uma ideologia ou de uma religião técnica que esqueceria as suas diferenças.”
IMPÉRIO E CADÁVER ESQUISITO
Se o Nobel da Literatura em 1957 tivesse oportunidade de fazer o diagnóstico do estado atual da UE, talvez escrevesse qualquer coisa parecida com o que fez Timothy Garton Ash, a semana passada, no Financial Times: “O mais recente exame médico revela que uma mão tem de ser amputada (gangraena brexitosa), um pé está terrivelmente inflamado (putinisma ukrainica), uma doença de pele alastrou a várias partes do corpo e está a provocar perigosas reações alérgicas (xenophobia populistica), uma úlcera está a corroer-lhe o estômago (eurozonitis), além de padecer ainda de logorreia e de perda de memória.” Um retrato tão cirúrgico quanto cínico da organização que Marine Le Pen, a líder da Frente Nacional francesa, gosta de definir como “um cadáver que ainda mexe”.
Não se julgue porém que o prestigiado analista e professor britânico tenha qualquer receita milagrosa para a UE que coincida com as terapias de choque propostas pela candidata à presidência gaulesa, a qual aposta no simples encerramento de fronteiras para conter supostas ameaças migratórias, na reintrodução do franco, num divórcio litigioso com o clube de Bruxelas e num “novo mundo” com “líderes patriotas” entenda-se, por exemplo, Donald Trump e ela própria.
Para que não haja dúvidas, Marine Le Pen é apenas uma das muitas personalidades que pretendem acabar o mais depressa possível com a União Europeia. Um objetivo há muito partilhado não apenas por políticos xenófobos que responsabilizam Bruxelas por todos os males do universo mas também por certos profetas do Apocalipse. No início do século XXI, o economista do MIT Rudi Dornbush afirmava que a UE parecia uma “velha senhora” ao volante de um carro a pedir reforma. Com a morte não se brinca, mas foi este investigador germano-americano a receber entretanto a certidão de óbito. Paul Johnson, um historiador britânico que foi militante trabalhista antes de se converter aos tories e ao euroceticismo, também assinou colunas no Wall Street Journal sobre o carácter terminal da UE. Em 2012, quando a Grande Recessão e os resgates à Grécia, à Irlanda e a Portugal pareciam ser o princípio do fim para os então 27 estados-membros, Fareed Zakaria, a vedeta da CNN, falou vezes sem conta do “declínio do Velho Continente” e um dos grandes vultos académicos de Singapura, Kishore Mahbubani, afirmou que a Europa ainda não tinha percebido como se “tornara irrelevante para o resto do mundo”. Ted Malloch, o homem que Donald Trump quer nomear como embaixador dos EUA junto das instâncias comunitárias, garantiu no final de janeiro que a UE é “um império” que tem os dias contados tal “como sucedeu com a União Soviética” e que a Zona Euro “não sobreviverá mais de 18 meses”.
COM FUTURO E INFLUÊNCIA
Análises precipitadas, a fazerem lembrar a famosa frase de Mark Twain: “Parece-me que as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas.” Convém recordar que a UE é o maior espaço de paz, democracia, progresso social e direitos humanos que a Humanidade alguma vez conheceu. E que a sua génese resulta de algo bem prosaico: evitar que os europeus se continuassem a matar, após uma história comum de rivalidades assassinas e duas guerras mundiais que fizeram mais de 100 milhões de vítimas.
Foi com este cenário bem presente que um dos grandes europeístas do século XX, o conde Coudenhove-Kalergi afirmou em 1948, num congresso realizado em Haia, na Holanda: “Não nos podemos nunca esquecer que a União Europeia é um meio e não um fim.” As suas palavras foram levadas à prática pelo alemão Konrad Adenauer, o francês Jean Monnet, o italiano Altiero Spinelli e os demais pais fundadores da CEE.
Assim nasceu a 25 de março de 1957, em Roma, a organização que tinha por objetivo primeiro reconciliar as nações europeias. E, nesse aspeto, talvez faça sentido reconhecer que o balanço é bem positivo, se descontarmos a incapacidade europeia para lidar com a implosão da velha Jugoslávia na década de 90. Romano Prodi, o antigo primeiro-ministro italiano e ex-presidente da Comissão Europeia, concedeu uma entrevista à Euronews em que sublinhava muito bem este último ponto, ao declarar que, “pela primeira vez desde o Império Romano, três gerações seguidas de europeus conseguem viver em paz”. Mas não só.
O pacto supranacional originalmente subscrito por seis países (ver cronologia) também permitiu aos sobreviventes do pós-guerra terem comida em casa e uma vida digna. O modelo social criado pela CEE era baseado no crescimento e na redistribuição económica. E o seu sucesso foi tal que, nos primeiros 25 anos, a economia europeia cresceu duas vezes mais depressa do que durante todo o século XIX, a par da qualidade de vida dos cidadãos.
Como se pode compreender, nas últimas semanas, têm sido as personalidades italianas a manifestar o maior empenho e otimismo no projeto iniciado há 60 anos, em Roma, no Palazzo dei Conservatori. Enrico Letta, o socialista que liderou o governo transalpino entre 2013 e 2014 e agora preside ao Instituto Jacques Delors, acredita que o ano de 2017 ainda pode fechar em beleza, apesar dos desafios. “Esta é a última ocasião para a Europa se tornar adulta. O statu quo é impossível. O futuro da Europa deve ser de influência porque nenhum dos países europeus vai ter a dimensão, por si só, para ser um interlocutor face à China ou à Nigéria que vai ter tantos habitantes como a Europa daqui a 10 anos. Aqueles que, como Trump, afirmam ser necessário (…) regressar ao estado-nação enganam-se”, explicou Letta ao jornal francês Les Echos. Palavras que podem ser também subscritas pelo Presidente gaulês, François Hollande. Numa conversa que teve com representantes de sete diários europeus, admitiu estar muito inquieto com o “regresso dos egoísmo nacionais sem que haja uma ambição comum” e que a “Europa tem de avançar a diferentes velocidades, caso contrário vai explodir”.
MARCHAS E EXTREMA-UNÇÃO
No dia 17, data em começaram em Roma as celebrações oficiais do 60º aniversário, uma voz destacou-se pelo seu discurso provocador e inflamado. Laura Boldrini, a antiga porta-voz de António Guterres e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, que agora é presidente do Parlamento italiano, afirmou perante os seus pares no hemiciclo, em inglês e por diversas vezes, “Europe first!” Foi o melhor expediente que encontrou para enaltecer os feitos da UE e sublinhar a necessidade dela ter uma forte dimensão social: “É aí que deve alcançar uma classificação AAA e não apenas a nível financeiro.” Eleita pelas listas da Esquerda, Ecologia e Liberdade (SEL), a antiga jornalista defendeu até a criação de um subsídio de desemprego e um “rendimento de dignidade” comuns a todos os estados da União. Uma proposta que não tem qualquer chance de ser aprovada nos tempos mais próximos porque nada de especial será decidido devido às eleições francesas e germânicas. Até porque pelo meio há uma questão prioritária a tratar: o divórcio da UE com o Reino Unido.
O Governo de Londres vai acionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa e, a partir de 29 deste mês, tem início o famoso Brexit, que deverá culminar na saída formal dos britânicos em março ou abril de 2019. A 29 de abril, os líderes europeus vão reunir-se em Bruxelas para concertarem posições num encontro em que a primeira-ministra Theresa May já não marcará presença. Aliás, a dirigente inglesa também fará gazeta às cerimónias desta sábado, em Roma, e não é de estranhar que ela e alguns dos seus ministros se queiram manter bem longe de um eventual embate entre europeístas e eurocéticos nas ruas da Cidade Eterna. As autoridades italianas suspeitam que grupos neonazis, anarquistas e afins se infiltrem na plataforma Eurostop e provoquem distúrbios contra os participantes da manifestação #MarchForEurope2017. Promovida pelo mediático Alberto Alemanno, professor universitário em Florença, Paris e Nova Iorque, esta marcha conta com o apoio de dezenas de outros académicos incluindo o britânico Anthony Giddens, inspirador da Terceira Via de Tony Blair e de quase três centenas de organizações não governamentais. Uma delas chama-se #PulseOfEurope e promete dar ainda muito que falar. Nasceu em novembro do ano passado, por obra e graça de um grupo de amigos, liderado pelo advogado alemão Hansjörg Schmitt, de 44 anos. Desde então, através das redes sociais, já mobilizou milhares de pessoas em sete países. Objetivo: falar, discutir e fazer barulho pela UE, todos os domingos, ao início da tarde.Em Lisboa e no Porto, já conta com alguns seguidores e a página web do movimento tem igualmente uma versão em português. Eles querem ser a prova viva de que ainda vale a pena defender e cantar odes à “velha senhora” que anda há 60 anos a ser prendada com inúmeros atos de extrema-unção.
Artigo publicado na VISÃO 1255 de 23 de março