O movimento da unificação irlandesa há muito que estava adormecido ou, pelo menos, sem energia suficiente para se tornar uma prioridade política. A saída britânica da União Europeia (Brexit) abanou essa apatia e, quer na República da Irlanda, quer na Irlanda do Norte, sob soberania britânica, a reunificação deixou de ser apenas um argumento (e sonho) do líder nacionalista do Sinn Féin, Gerry Adams.
O Brexit pode representar, num cenário de não-acordo entre Londres e a UE, a existência de uma fronteira física entre as duas Irlandas. E, nem Belfast, nem Dublin se sentem confortáveis com esse desfecho. A Irlanda do Norte (Ulster), tal como a Escócia, tem repetido que no referendo do Brexit, em junho de 2016, a maioria votou a favor da permanência no clube europeu: 56% contra 44%. O novo ambiente político no norte convida agora a um maior choque com Londres. Pela primeira vez desde a cisão irlandesa, em 1921, que os unionistas perderam a maioria no parlamento – a diferença entre o Partido Unionista Democrático, apoiado pelos protestantes, é de agora um deputado em relação ao Sinn Féin, suportado pelos católicos. Londres “continua a recusar ouvir a perspectiva da maioria. O Brexit será um desastre para a economia e para o povo da Irlanda. Para nós, no Sinn Féin, isso aumenta a urgência de um referendo sobre a unidade irlandesa e isso deve acontecer o mais rápido possível”, disse Michelle O’Neill, a jovem estrela dos nacionalistas na região.
A restante classe política, a norte e sul, prefere um discurso mais prudente, de pequenos passos, mas com o mesmo fim. O primeiro-ministro irlandês quer um cláusula especial no acordo final do Brexit, que permita ao Ulster entrar na União Europeia no caso de uma reunificação – Dublin aponta como precedente a integração da ex-RDA na Alemanha nos anos 90. “No futuro, se ocorrer [a reunificação], à Irlanda do Norte deve ser facilitado o acesso como membro da União Europeia outra vez…queremos essa linguagem incluída no acordo a ser negociado”, disse o conservador Enda Kenny. Os liberais do Fianna Fáil, que suportam o governo de minoria irlandês, deram um passo mais à frente ao prometer um livro branco sobre o reforço das relações entre o sul e o norte e que, em última instância, pode servir de roteiro para um referendo de reunificação.
A população oscila entre o cepticismo e a indiferença. Uma sondagem para a BBC, de setembro passado, indicava que 52% dos inquiridos na Irlanda do Norte eram contra um referendo sobre a unificação (border poll) e 33% a favor. A oposição era mais vincada entre os protestantes (72%), enquanto 53% dos católicos assinalaram ser a favor de uma chamada às urnas. Mas, na pergunta sobre como votariam nesse referendo, 63% preferia ficar dentro do Reino Unido e só 22% apontaram para a união da Irlanda. No sul, em outra sondagem da BBC de 2015, 66% dos inquiridos gostaria de assistir a uma unificação da Irlanda, mas a percentagem descia para 31% no caso de terem de pagar mais impostos. No último border poll, em 1973, a esmagadora maioria dos irlandeses do Norte votaram pela continuação no Reino Unido (98,9%), num referendo com uma participação baixa (58,7%) devido ao boicote dos nacionalistas.
Os protestantes continuam a ser a maioria entre os 1,8 milhões de habitantes no Ulster, mas a evolução demográfica joga a favor dos católicos no espaço de uma geração. Os sinais desta mudança já se fizeram notar nas últimas eleições, no ínicio de março, com os unionistas da DUP e da UUP a perderem, em conjunto, 16 lugares no parlamento do território.
Bruxelas segue com atenção as movimentações, sem nenhuma ingerência ou interferência, por enquanto. Mas esta semana aos nacionalistas irlandeses chegou um apoio europeu de uma capital inesperada: Madrid. Do Kosovo à Escócia, qualquer movimento de secessão não é reconhecido pelo governo espanhol – com receio de um precedente que abra as portas a uma Catalunha independente –, mas o caso irlandês pode ser uma excepção. Alfonso Dastis, ministro dos Assuntos Externos espanhol, disse esta semana que Espanha admite um tratamento diferenciado para o Ulster, a começar pela livre circulação entre as duas Irlandas após o Brexit.
No melhor cenário, a fronteira entre o norte e sul continua sem obstáculos. No pior caso, as alfândegas regressam para monitorizar pessoas e bens numa ruptura de statu quo capaz de alterar a aparente passividade dos cidadãos perante a reunificação. Num cenário intermédio há sempre uma réplica do acordo entre a Noruega, país não-membro da UE, e a Suécia que minimizaram a burocracia da fronteira. Cerca de 14% das exportações irlandesas têm como destino o mercado britânico – um valor relevante, mas menos significativo que os 20% enviados para os EUA ou os 50% para o resto da União Europeia, segundo dados do Instituto Adam Smith.
Dublin e Londres vão estar à mesa das negociações do Brexit a tentar preservar a fronteira virtual que existe hoje, mas outros 26 estados podem dificultar os trabalhos até ao acordo final previsto para 2019.