Os U2 de inocentes não têm nada, já de experientes têm tudo. Ao longo de quase duas horas foram exímios anfitriões numa sala de estar que muitas vezes tornou-se intimista, provando que só mantêm a inocência de quatro rapazes irlandeses que continuam a juntar-se para tocarem e cantarem juntos. A Altice Arena lotada com 19 mil pessoas (mil lugares foram retirados para dar lugar a mesas de mistura e a projetores de luz) pareceu pequena para receber “a maior banda do norte de Dublin”, como passa nos ecrãs durante o concerto. O discurso de Charlie Chaplin do filme O Grande Ditador, de 1940, antecede as imagens das várias cidades europeias por onde passa a tour Experience + Innocence, em estado de sítio, com cenários de guerra, ambientes de ditadura e opressão nos anos de 1920 a 1940, abrem a janela para o que se segue. Uma aula de cidadania ativa, de como a democracia só depende de nós todos. “Só não se mete com o Trump”, dizia à VISÃO Nuno Braamcamp, diretor da Ritmos & Blues, antes de começar o espectáculo.
Nuno Braamcamp pediu quatro datas de concerto, mas a sorte ditou-lhe apenas duas. “Os U2 mantêm a mesma linha de produção mas com muito bom gosto”, descreve o único promotor de espetáculos que, ao longo de 25 anos, trouxe os U2 a Portugal. “Disseram-me: esta tournée não é para ti, nem para o público em geral, é para os fãs, daí ter sido delineado para salas fechadas.”
Nuno Braamcamp concorda que os dois últimos álbuns que dão o mote para a digressão, Songs of Innocence (2014) e Songs of Experience, o último álbum dos U2, o 14.º de estúdio editado em dezembro de 2017, não tiveram a atenção suficiente do público. Até falou com Bono sobre o assunto, mas o cantor disse-lhe que querem continuar a lançar novos trabalhos. Antes do concerto, os dois tiraram um fotografia para a posteridade e Nuno achou-o mais magro e com ar cansado.
A Europa de António Guterres
A batida dançável da primeira música, The Blackout, surpreende quem não conhecia os trabalhos mais recentes dos U2. É uma bela surpresa, tal como a seguinte, Lights of Home, em que Bono já pisa o palco circular, no meio da arena. A voz de Bono está a 100%, Nuno Braamcamp já não precisa de se preocupar. Na noite em que Bono perdeu a voz, no segundo concerto da banda em Berlim, no arranque da digressão na Europa, Nuno Braamcamp nem dormiu. Só quando voltou a ouvir a voz de Bono ao telefone descansou. Já em Lisboa, o vocalista irlandês garantiu-lhe: “Tenho a melhor voz de sempre.”
Este é um concerto sem os tradicionais ecrãs gigantes no palco. Aliás, o palco prima pelo minimalismo, com uma grande cortina preta e Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. em palco ocupam pouco espaço. As imagens passam numa estrutura central que tanto serve para mostrar ainda mais de perto os artistas, como para passar ilustrações deliciosas, em jeito de videomappping.
É como se Bono e os amigos tivessem-nos convidado para a sua grande sala de estar e vão-nos falando das suas vidas. Há tempo para recordar a mãe de Bono, Iris, chegando mesmo a partilhar fotografias do casamento dos pais; para percorrermos a rua deles em Dublin, Cedarwood Road, “onde têm amigos e inimigos”; evocar o Domingo Sangrento de 30 de janeiro de 1972, com Sunday Bloody Sunday. O público responde e reage sempre à conversa destes “rapazes comuns”, mas com “vidas extraordinárias”.
Uma espécie de segunda parte abre já com os músicos no palco circular com Elevation a levar a plateia ao rubro. Cantam-se as músicas em coro, do princípio ao fim. Uma bola de espelhos eleva Even Better Than the Real Thing a mais um momento dançável, com uma batida de discoteca. Bono fala do Mediterrâneo, o mesmo mar em que os quatro tantas vezes passeiam e brincaram com os seus filhos e onde agora os cruzeiros de turismo cruzam-se com os botes de borracha à pinha de migrantes. Estamos na Europa de António Guterres.
Que bom que foi voltar a ser surpreendida pela banda de sempre. Pioneiros nos espetáculos pensados para os estádios, em pleno século XXI e com a tecnologia num progresso galopante, os U2 conseguem captar a nossa atenção graças à simplicidade, ao bom gosto e à mensagem de que o futuro da democracia está mesmo nas nossas mãos.