Comecemos por folhas de palmeira, daquelas que adornam as festas tradicionais de verão como as que são retratadas no filme Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes. Ao contrário do das Festas do Espírito Santo, que decorriam numa praça ali ao lado, este palco era estilizado, feito de madeira da região, a criptoméria, e fazia parte de uma estrutura a que chamavam “pavilhão”, montada no Largo de São João, em frente à fachada principal do teatro Micaelense, em Ponta Delgada. Tratava-se do espaço que serve de casa à 8ª edição do festival de arte pública, artes plásticas e performativas Walk&Talk, a decorrer na ilha de São Miguel desde 29 de Junho até este sábado, 14, e que serve de ponto de encontro entre organizadores, artistas, espectadores e curiosos.
A última actuação que animou a noite no passado sábado, 7, foi a de Conan Osiris, autor do disco feito de um caldeirão de géneros atento ao zeitgeist musical, intitulado Adoro Bolos. Acompanhado pelo seu próprio Bez, essa figura mítica cuja função nos Happy Mondays se resumia à dança em palco, o rapaz do futuro (foi buscar o primeiro nome à série de desenhos animados e o segundo a um deus da mitologia egípcia) começou por refilar com a mesa de som; o olhar tinha-o sempre franzido, cara de poucos amigos. A personagem tinha, ainda, um rabo de cavalo de cabelo falso a cair-lhe do chapéu, pelas costas abaixo, oleado/capa transparente cor-de-rosa, calções e sapatilhas brancas. A pose era concomitante com as letras que cantava – “não me interesso por nada do que vocês se interessam” – e trabalhava, desta forma peculiar com o seu público, o binómio desejar e ser desejado.
É precisamente esse o binómio que é explorado na exposição Untitled (How Does It Feel), comissariada por João Mourão e Luís Silva, da Kunsthalle Lissabon. A dupla transportou a dicotomia desejar e ser desejado para o espaço de um centro comercial, conferindo-lhe uma adenda. Mesmo abaixo do Largo de São João, junto à Marginal, encontra-se um edifício de habitação e escritórios muito mais alto do que todos os outros em Ponta Delgada. Os pisos de baixo são ocupados pelo Solmar Avenida Center. A proposta da exposição é estender a interação do consumidor com as montras e conduzi-lo até ao quarto andar, através de sinalética gráfica.
“Ficámos obcecados pelo espaço, pelo conjunto arquitectónico, pela escala estranha. Este projecto foi construído no pós-25 de Abril. Todas as cidades do país têm um”, explicou Luís Silva, enquanto conduzia uma visita aos jornalistas. “Pensámos na ideia de desejo, do olhar enquanto desejo; as imagens, os objectos pedem que olhemos para eles.” Luís Silva falou também no quiasmo “ver como forma de desejar e desejar como forma de ver” para traduzir a relação do espectador com as obras expostas.
Uma das peças mais interessantes daquele quarto andar que se encontra devoluto, e que por isso mesmo serve melhor ainda o conceito da exposição, está logo à entrada, à direita: Looking (prospection/ exchange/ profit), da autoria de André Romão. Colocado no chão, um televisor mostra um grande plano a preto e branco de um olho. A pupila está dilatada ao máximo e, apesar de a TV se encontrar no solo, o trajeto da visão desse olho consegue passar por cima do nosso próprio olhar, como se nos evitasse e se demorasse em algo para lá e acima da nossa cabeça. A provocação e o jogo que lhe é inerente são aqui redutos do acto conanosiriano de nos colocarmos no papel de sujeito e objecto de desejo perante o outro.
A multiplicidade de desejos inerentes ao ato de olhar foi também trabalhada pelo coletivo de arquitectura Camposaz, a quem foi proposto construir um miradouro em Vila Franca do Campo, com vista para o ilhéu. A caminho de Ponta Delgada para Vila Franca do Campo, o cinzento claro do céu e o cinzento escuro do mar formavam um bloco a dois tons tirado de um quadro de Rothko. No terreno do miradouro por construir, encontravam-se paus de madeira dispostos como num jogo do mikado. Ao lado, estava uma maquete em miniatura do que estava planeado construir em madeira criptoméria.
“A sensação que exploramos é sobretudo a do olhar, perceber este ilhéu à nossa frente. Ao mesmo tempo, tens esse mesmo sujeito a olhar para ti”, explicou Mariella, da Camposaz, referindo-se à ilhota que tem direito a visitas limitadas (160 por dia, 40 em simultâneo). O impacto da água, da pedra escura, da vegetação de um verde tropical ou do vento fez com que os membros da colectivo pensassem em blocos que tanto exploram a horizontalidade como a verticalidade, o fechado como o aberto. “Um bloco eleva-te, outro pressiona-te. Num, vês a vista; noutro, perdes a vista. Num, tens contacto com a terra; noutro, com a madeira. Interessam-nos estímulos diferentes”, complementou Mariella. A perenidade da obra em espaço público é outro apontamento poético do projecto. “A madeira é como uma mulher bonita: envelhece e fica bonita na mesma.”
Na Ribeira Grande, no Arquipélago, um conjunto arquitetónico que adaptou três fábricas a centro de artes contemporâneas, pôde assistir-se na sexta-feira, 6, à performance Time, da autoria de André Uerba. Às escuras, sentado a ladear as quatro paredes do anfiteatro, o público deparou-se com várias geometrias de fios inflamáveis que se encontravam pendurados pelo tecto e quase tocavam no chão. Às escuras, cada um dos performers ia acendendo paredes de fios, um a um, munidos de isqueiros, e a combustão formava desenhos de luz perenes que exigiam uma atenção, um vagar ao olhar, que desafiou o tempo cada vez mais limitado que despendemos a dar atenção seja ao que for. Este buraco negro em que nos encontrávamos exacerbava essa suspensão do mundo e obrigava-nos a reparar no conforto que esse esforço de permanecer desligado nos pode dar.
Neste evento que começou em 2011 como festival de street art e que na edição de 2016 atingiu o pico de 16 mil espectadores, a arte de rua continua a desempenhar um papel importante. Se entrarmos no porto de Ponta Delgada, junto à marginal, deparamo-nos, em tons amarelos, vermelhos, brancos ou azuis, com os braços, pernas, cabeça, mãos e torso, bocados metafóricos de uma baleeira que no século XIX se fez passar por homem para poder ganhar o seu sustento. Na parede, pintadas no muro de betão, estão bandeiras de comunicação náutica, que correspondem às letras do nome desta mulher: Georgiana Leonard. Da autoria de Navine G. Khan-Dossos, Georgiana é uma memória grafitada que perde tamanho vista de longe, a partir de uma embarcação ancorada no porto, mas que, na proporção inversa, ganha corpo em significado: o do poder de um nome.
O poder de um som e as camadas de significação a ele associadas é o que propõe a instalação sonora da dupla alemã Nora Al-Badri e Jan Nikolai Nelles, também no contexto do circuito de arte pública do festival. “A ideia é questionarmos de onde vem o conhecimento na nossa sociedade”, referiu Jan Nikolai Nelles, à mesa, no “pavilhão”. “Quem é que define as narrativas dominantes? O nosso conhecimento tem uma estrutura colonial.” Nikolai enfatizou o facto de, em outras culturas, a música ser polirrítmica. Cada músico toca num ritmo próprio mas, enquanto conjunto, todos os sons encaixam e tudo faz sentido.
Num trabalho a ser encetado com a colaboração da Universidade dos Açores, a partir do estudo das ondas, Al-Badri e Nelles exploraram a natureza, no caso o oceano, na qualidade de produtora de conhecimento, de fonte natural de dados. “As ondas são uma metáfora do ritmo do oceano”, continuou Nelles. “Este trabalho tem um sentido de lembrança: o oceano é um conjunto de dados e nós não os ouvimos no nosso quotidiano. Nós nem sequer ouvimos o nosso corpo, hoje em dia.” Os dados compreendem dez anos de medições das ondas e a dupla compactou-os num estrutura sonora de dez minutos. “Isto é olhar para o passado, mas também olhar para o futuro”, acrescentou Nelles. “Mostra-nos a impossibilidade de a ciência prever o próximo passo da onda.” Confrontado com a Quântica, Nelles referiu não ter pensado nisso, mas que a teoria do caos e a teoria do jogo fazem todo o sentido neste trabalho.
Teoria do jogo aplicada à estratégia militar foi o que pudemos ver nas imagens de satélite do cenário de guerra que estavam a ser mostradas no ecrã de um televisor LCD grande o suficiente para ser impossível ignorá-lo. No rés-do-chão do Instituto de Cultura de Ponta Delgada, Maya Saravia montou uma exposição site specific, em que a sala da associação se tornou na sala de um bar. Há mesas e cadeiras de vários credos e há até cervejas disponíveis para os espectadores beberem. Na televisão, as imagens passavam para a Cimeira dos Açores que em 2003 reuniu na base das Lajes o presidente George W. Bush e os primeiro-ministros Tony Blair, José Maria Aznar e Durão Barroso. A discussão: a invasão do Iraque.
Pedro Pascoal de Melo, secretário do Instituto que funciona “um bocadinho como a memória da ilha” – tem um arquivo de cerca de 15 mil fotos –, fez de cicerone. “Maya Saravia é da Guatemala, que vive num estado de guerra quase permanente”, contextualizou. “Ela espantou-se com a série de artigos que encontrou cá a darem notícia do golpe de estado que aconteceu no país e pensou na forma de as duas geografias se poderem encontrar.” El Olvido é o nome de um bar que existe na Cidade da Guatemala, conhecido pelas tertúlias de ativismo político. A decorar as mesas, flores de plástico. Vieram do imaginário que a artista tem da sua terra, da sua origem.