Ninguém pode dizer com certeza qual é o próximo grande sucesso que aí vem na música, até porque esta, como qualquer arte, pode ser um universo de difícil compreensão, um mar revolto cujas correntezas e inclinações nem sempre são evidentes. Mas se há algo que a sua história nos ensinou é que existem circuitos, mais ou menos obscuros, que preparam o palco para as estrelas de amanhã. A VISÃO foi em busca de alguns dos mais talentosos jovens protagonistas que estão a surgir nesses perímetros underground: oito artistas e bandas, originários de diferentes zonas do país, com uma invulgar capacidade para a música, que prometem marcar, em géneros musicais tão diferentes como o pop, rock, hip hop ou eletrónica, a banda sonora da sua geração. Quisemos saber o que os motiva, como encaram o legado que lhes foi deixado e de que forma pretendem fazer avançar a expressão dessa arte no atual contexto da modernidade.
Nenhuma destas oito bandas possui música editada antes da viragem da década, e o contexto das redes sociais manifestou-se desde os primeiros momentos das suas carreiras. Apesar de ser, hoje em dia, considerado uma das mais promissoras jovens apostas do hip-hop português, Slow J, nome artístico de João Coelho, 24 anos, não hesita em dizer que continua a ser “o rapaz que fez as músicas no quarto e pô-las no YouTube”, depois de tirar o curso de engenharia de som, em Londres. Sorte semelhante teve Débora Umbelino, 21 anos, autora de uma eletrónica etérea que, sob o nome Surma, iniciou o seu percurso musical com uma página promocional no Facebook. E também Catarina Moreno, Mai Kino em disco, outra artista de pop eletrónica, estreou-se publicando, no Soundcloud, dois temas que havia escrito em casa, “mais como um exercício antivergonha do que qualquer outra coisa”. Mesmo os Galgo, quarteto de math e psych rock cuja grande oportunidade surgiu da vitória num concurso de bandas promovido pela faculdade do guitarrista, beneficiam da frescura da contemporaneidade na qual nasceram.
É um ponto de partida que dá a estes jovens (a grande maioria millennials já da década de 1990) uma perspetiva e, muitas vezes, um método de criação diferente dos seus antecessores. E isso passa, muitas vezes, pelo autoconstrangimento: os Cave Story, quarteto indie e pós-punk das Caldas da Rainha, orgulham-se de “pensar de forma cada vez mais económica, impondo mesmo regras limitativas de composição” ao seu trabalho, ao passo que Lince (Sofia Ribeiro), ex-We Trust, reconhece que estava “confortável” na banda anterior, mas que aprecia “a ideia da saída de uma zona de conforto para uma posição de maior fragilidade como forma de retirar o melhor de um artista”. Há, ainda assim, abordagens mais conceptuais, como a da dupla de pop experimental Ermo, cujos elementos se conheceram, aos 17 anos, numa loja de conveniência em Braga e que, desde aí, evoluíram “no sentido de exprimir uma vertente de significado que explorasse mais a relação da tecnologia com essa ideia de isolamento e solidão”. Ou a dos Sensible Soccers, trio eletrónico que começou a ensaiar numa casa abandonada em Fornelo, Vila do Conde, que afirmam: “Não sabemos bem como chegar ao som que fazemos.” Por outras, palavras: “Há uma plataforma silenciosa entre nós, um entendimento mútuo sobre como avançar com uma ideia, rejeitar outra, reestruturar a abordagem ou saber quando a coisa está acabada.”
Heranças e ruturas
Todas estas visões não implicam que deixe de haver, por parte destes artistas, um reconhecimento àqueles a quem devem as suas raízes. Slow J, que insiste “vestir a camisola” do novo rap português, não abdica de agradecer a “quem ensinou esta geração a fazer hip hop: Sam the Kid, Valete, Chullage ou Halloween. Respeito-os muito por serem músicos que falam de um ponto de vista muito pessoal, às vezes a pender para o comentário social ou o ativismo.” Os Galgo, cujo álbum de estreia, Pensar Faz Emagrecer (2016), chega do seio do novo rock alternativo português, agradecem aos membros das bandas que ajudaram a popularizá-lo: Linda Martini, PAUS, Riding Pânico ou Quelle Dead Gazelle, com quem, mais do que uma semelhança puramente estética, partilham amizade e companheirismo profissional. E mesmo Mai Kino, estabelecida em Londres desde muito nova, e onde lançou a sua carreira na música, não deixa de louvar o papel dos artistas nacionais que marcaram uma época na fusão da eletrónica e do afrobeat, e que diz serem “importantes na minha redescoberta das origens portuguesas” – Buraka Som Sistema, Branko ou Batida.
Emoções fortes
Mas, na arte destes novos músicos, há algo a dizer sobre a emoção, um guia que norteia, por exemplo, o trabalho de Surma, artista que foi buscar o nome a uma tribo indígena da Etiópia. “Para mim, a música tem muito a ver com essa forma de viver – o desligar do supérfluo e do materialismo. Gostava que as pessoas a ouvissem de forma medicinal, apagando tudo o resto da mente”, conta. Essa noção persiste igualmente no discurso de Lince, que admite identificar-se com “a ligação entre o imaginário da astronomia e a emoção”: “As minhas canções, vivendo no âmbito mais pessoal e íntimo, acabam por adquirir essa espacialidade.” Também Mai Kino confessa nem sequer ter um objetivo estético específico: “Eu tenho sinestesia [condição neurológica rara, que relaciona planos sensoriais distintos como a visão ou o cheiro], e tento capturar, na música, uma atmosfera que possa ser expressa por uma cor, uma textura, um som, talvez um elemento etéreo ou um sonho.” Atuando num registo mais rasgado, a banda Cave Story opta pela abordagem oposta: “É sempre muito melhor quando se sente algo espontaneamente do que quando te dizem “olha, devias sentir isto”. Nós gostamos mais de apresentar um tema sem grande conotação apegada e deixar que as pessoas cheguem às suas conclusões.”
Se há algo, no entanto, a que quase todos estes jovens artistas ambicionam, é uma identidade que lhes permita demarcarem-se como únicos. Os Galgo reconhecem-na, em si e nos outros: “É muito bom ver bandas a aparecerem com estilos diferentes, não a imitar o que está lá fora mas a tentar fazer um som próprio. A demonstrarem não só as capacidades técnicas, mas sobretudo a individualidade criativa. E isso acontece muito na indústria nacional mais underground.” Os Sensible Soccers e Slow J, por outro lado, fazem dessa marca individual o seu principal objetivo. Os primeiros veem, nos temas instrumentais que compõem, “criações que evocam impressões ou memórias de infância, tratadas com sentido de humor ou de forma mais séria, mas sempre com identidade, nunca frias”. O segundo denuncia riscos: “Se eu fizer uma música e, na introdução, já souberes o que vai acontecer, perdi o jogo.” “Como artista, o que quero fazer sempre é algo único, essa é a minha maior vantagem. Sinto que a única coisa com que me posso comprometer é com essa honestidade, com a tentativa de exprimir o que é a experiência de um ser humano, que sou eu”, refere Slow J. Por sua vez, os Ermo acreditam neste princípio: “Somos artistas, e, para nós, a arte é dar novas molduras à nossa consciência. Para isso, é necessário quebrar categorias musicais, intelectuais, emocionais, talvez até mesmo abrir uma linguagem nova. É isso que procuramos fazer.”
Aplausos, claro
A última palavra, essa é dirigida ao público, que, em maior ou menor número, torna possível a estes músicos, na sua maioria abaixo do limiar da fama apesar do talento, continuarem na área que os apaixona. Surma pasma-se com o facto de, “mesmo só tendo duas músicas lançadas”, ter a possibilidade de fazer digressões nacionais e europeias com a Omnichord, e comove-se por a sua música ter ajudado uma fã a vencer uma depressão. Os Cave Story acham inacreditável que, quando tocam numa “terriola qualquer no meio de França”, “alguém venha cumprimentar-nos e reclame porque não tocámos aquela música”. Os Galgo dizem que é “demasiado gratificante, estarmos em sítios onde ninguém nos conhece e aparecer uma pessoa do nada, o pontinho vermelho no meio dos azuis, que mostra a sua alegria por nos ter visto tocar e ainda compra uma t-shirt.” Slow J, que há meros dois anos lançou as primeiras canções, confessa: “Se eu imaginasse a minha vida nesta altura, não sei se a imaginaria muito melhor do que é. Tenho pessoas que, no fim do concerto, vêm dar-me um abraço, raparigas que dizem que a minha música as ajuda… É surreal. E, no fim das contas, é apenas uma retribuição, porque foi isso o que a música sempre fez por mim.”
(Artigo publicado na VISÃO 1276, de 14 de agosto de 2017)