Uma serenidade imensa e uma inquietude permanente. Em Leonard Cohen coexistiam bem estes dois traços, aparentemente opostos. É por isso que podemos ouvi-lo hoje, em loop, cantar “Hineni, hineni, I’m ready my Lord!” da canção que deu título ao seu último álbum, You Want It Darker, lançado há menos de um mês (21 de outubro) e há tanto de tristeza como de serena despedida ao escutarmos a sua voz familiar. Leonard Cohen teve uma grande vida. E uma boa parte dela foi partilhada com milhares de pessoas um pouco por todo o mundo ao longo dos anos.
Inquietude, pois. Que o levou, nos anos 90, depois dos motins que incendiaram vários bairros de Los Angeles onde vivia (e onde, morreu aos 82 anos, nesta quinta-feira, 10) a refugiar-se na comunidade zen de Mount Baldy, nas montanhas da Califórnia, onde acordava diariamente antes do sol nascer e conduzia o seu mestre e amigo Joshu Saski Roshi, aprendendo sempre com ele. Mesmo em silêncio. Ali, Leonard Cohen ganhou o nome Jikan, ou seja, “o silencioso”. Em Cohen, e na sua obra, junta-se a tradição judaica da sua herança familiar e os saberes orientais do budismo ou taoísmo. Palavras e silêncios. Não tinha que fazer escolhas para acumular experiências.
Ficará para sempre conhecido como músico, recordado como o escritor de canções que se tornaria, em vida, um monumento da música popular em todo o mundo. Mas antes de ouvirmos a sua voz grave e calma num primeiro disco (Songs of Leonard Cohen, de 1967) tudo indicava que a sua carreira artística seguiria outro caminho. Em 1956, aos 22 anos, publicou o livro de poemas Let Us Compare Mythologies. Seguir-se-iam muitos outros, incluíndo o polémico Flowers for Hitler, logo em 1964. Também os seus dois romances foram lançados antes de um primeiro disco: The Favorite Game, em 1963, e Beautiful Losers, em 1966 (ambos traduzidos em português). Mas, apesar do sucesso junto da crítica, as parcas vendas mostraram-lhe que não conseguiria viver da literatura.
A descoberta da música de Bob Dylan, em meados dos anos 60, foi determinante – anunciou, mesmo, aos seus amigos que iria ser “o Dylan canadiano”. A caminho de Nashville, capital da música folk/country, ficaria retido numa grande armadilha chamada Nova Iorque, caótica e excitante. Os anos que aí passou no Hotel Chelsea (imortalizado numa das suas mais populares canções) mudariam a sua vida, mas no circuito de bares de Greenwich Village chegou a ouvir dizer que era velho demais para começar uma carreira na música. Mesmo depois de lançado o disco de estreia, o sucesso não parecia garantido. “Numa escala de alienação, Cohen fica algures entre Schopenhauer e Bob Dylan, dois outros proeminentes poetas do pessimismo”, escreveu um crítico do The New York Times, não particularmente conquistado. Mas canções como Suzanne, So Long, Marianne ou Sisters of Mercy, todas nesse notável álbum de estreia, ficariam para sempre.
Na verdade, Leonard Cohen nunca deixaria de ser o poeta inspirado pela Grécia (sobretudo a pequena ilha de Hydra, sua musa, onde em 1960 comprou uma casa por 1500 dólares) e apaixonado por belas mulheres. Quando o encontrámos no Hotel Raphael, em Paris, em 2001, num momento em que regressava aos discos (Ten New Songs) depois de um interregno de nove anos (The Future, 1992), falou-nos disso, com uma modéstia desarmante: “A poesia é um veredicto dado por outros em relação ao nosso trabalho. Normalmente dado por outros ao longo de várias gerações. E eu nunca planeei, nunca o faria, entrar nessa categoria de poetas – nem saberia como. Se o meu trabalho for considerado, esse veredicto vai ser feito muito depois de eu morrer. Não vale a pena esperar”. O processo está, agora, em curso. Cohen não cumpriu a promessa que fez numa das últimas aparições públicas: “As minhas intenções são viver para sempre.” Ou talvez soubesse bem o que estava a dizer.