Um padre pernambucano com sangue português, Francisco José da Santa Cruz, apresenta-se ao serviço da rainha Ginga, em plena época de disputas colonialistas alimentadas pela cobiça do tráfico de escravos. Na corte da implacável líder (ver caixa), envolvida em guerras e frágeis tréguas com portugueses ou holandeses, o padre observa a turba que a segue: “Não creio que amassem a rainha. Seguiam-na por medo e por desventura, que é como em geral os pequenos seguem os grandes.” E descobre que os homens e as suas circunstâncias podem ser matéria fluida.
Dezasseis anos depois do romance histórico Nação Crioula, José Eduardo Agualusa regressa ao género e ao triângulo Portugal-Brasil-Angola, geografia de eleição. Pelo meio da tragédia, há belas mulheres, filhos que resgatam os pais, tipos inesquecíveis, cenas de humor. “Este livro permitiu-me reencontrar o prazer de escrever. Esta história viveu sempre dentro de mim”, diz Agualusa, 53 anos, autor multipremiado de onze romances, além de volumes de contos, crónica, teatro. E acrescenta: “Acho que este é o meu livro mais sólido, mais redondo, mais acabado, mais vivo, mais livro, mais romance. Pela primeira vez, sinto que posso dizer que sou escritor.”
Porque sabemos tão pouco sobre História africana?
Não sei… Mas no caso do Brasil, mais ligado a África, um país de matriz africana, existe uma maior produção académica sobre a História de África, ainda que haja um fraco conhecimento da cultura africana contemporânea – sobre a música, por exemplo. O Brasil cortou com África quando acabou a escravatura. Em Portugal, existe um maior conhecimento da cultura contemporânea africana, mas, sobre a História, ainda há um longo caminho a percorrer. Existe um saber académico, mas este não passa para fora. E o que se sabe é apenas numa perspetiva, muito redutora. No que diz respeito ao grande público, há uma certa mitologia que ficou. Este livro sobre a rainha Ginga pode surpreender em Portugal porque vai mostrar uma outra perspetiva: a africana.
Mas houve outros livros dedicados à rainha Ginga.
Houve alguma literatura colonial, ou seja, ficção produzida por portugueses, utilizando o mito da rainha a favor do mito da construção do império. Quando as figuras se agigantam muito, todos os poderes têm a tentação de usá-las a seu favor… Depois da independência de Angola, foi publicado, pelo menos, um livro com a perspetiva oposta, hipernacionalista, transformando a rainha Ginga num ícone do nacionalismo angolano – o que também é absurdo. A rainha Ginga não é angolana. Ela atuou no espaço geográfico onde, hoje, se situa Angola mas que, então, não existia. É como Viriato. Ele não é um herói português, é um herói contra Portugal. A rainha Ginga não lutou por uma ideia de Angola. Pelo contrário: se ela tivesse triunfado, não teria existido Angola como hoje a conhecemos.
Descreve-a como uma “mulher pequena, escorrida de carnes e, no geral, sem muita existência”?
Ela não dava nas vistas pelo seu aspeto físico. O que tinha era personalidade – lendo os cronistas da época, isso é muito claro. A rainha Ginga rompeu todas as tradições e inventou o seu próprio mundo. Era, e é, uma figura perturbadora para toda a gente. Em Angola, fizeram agora um filme sobre ela. É uma produção do regime, se quiser, um tentar apropriar-se da rainha Ginga como uma bandeira do nacionalismo moderno. O que não faz sentido. Não vi o filme, mas disseram-me que a versão apresentada termina com imagens atuais, fazendo a ligação com os dias de hoje. Isso é interessante do ponto de vista sociológico: mostra, mais uma vez, o aproveitamento de uma figura que é tão grande que não pode ser ignorada. Realça-se o que interessa, apaga-se o que não interessa… É pena, porque ela é interessante na sua complexidade.
O que o motivou a escrever sobre ela?
Eu queria escrever A Rainha Ginga há muito tempo. O que me interessou foi mostrar que os africanos não foram uma parte passiva em todo este processo de construção de Angola, de África, do Brasil, mesmo de Portugal. E isto não é o que passa na História que as pessoas aprendem na escola. Porque a História é construída sempre na perspetiva do vencedor.
O narrador do romance é o padre Francisco José da Santa Cruz. Não colocou a hipótese de usar a própria rainha Ginga?
Não era possível. A grande dificuldade em escrever este livro é que se trata de um mundo remoto no tempo, é uma outra civilização. Tinha que ter um narrador que fosse um tradutor de línguas mas também de mundos. É um desafio que muitos escritores enfrentam. Lembro-me que num congresso dedicado à literatura africana, em Durban, muitos diziam, e com razão, que se há coisa que, hoje, distingue a literatura africana da que se faz, por exemplo, na Europa, é que os escritores africanos têm a perceção de que estão a escrever sobretudo para um público de fora – porque temos pouco público dentro, há uma grande taxa de analfabetismo, etc… São também tradutores de mundo. Este narrador é muito verosímil. Ficaria artificial colocar a ação na boca da rainha Ginga. Esse é um dos erros dos livros publicados sobre ela: não passam verdade.
A rainha Ginga emerge de todos os relatos como criatura cruel, inteligente, moderna, excelente estratega…
Todos os testemunhos vão nesse sentido. O curioso é que os inimigos vão reconhecendo o seu valor. Ela combatia ao lado dos seus homens, mas era também uma hábil diplomata. E, depois, tinha todas aquelas coisas que, na época, escandalizavam: por exemplo, um harém de homens vestidos como se fossem mulheres. Há uma troca de cartas interessante quando ela se converte [ao catolicismo] pela segunda vez: Ginga quer ficar com as suas “mulheres” e a igreja católica não aceita, permitindo-lhe que fique apenas com uma. Nos EUA, o equívoco de pensar que ela era gay, por causa de apresentar os seus homens como mulheres, deu origem a que o mito de Ginga virasse ícone gay de um certo movimento negro femininista.
Como chega a Francisco Santa Cruz, nome que é todo um programa?
Foi muito natural. A rainha Ginga teve realmente vários secretários, padres que sabiam ler e escrever, uma exceção na época. Além disso, é um brasileiro, pernambucano, que tem raízes indígenas, africanas, mas também portuguesas – uma soma de sangues inimigos, como ele diz. É um personagem que não foi escolhido por acaso. É também um narrador dividido, que está em crise de fé e de identidade.
E é um herói atípico: acaba por trair ambos os lados…
A figura do traidor é muito interessante do ponto de vista literário. Este personagem não tem convicções firmes sobre as coisas: ele põe em causa a sua filosofia, a sua fé, a sua vida, o seu futuro. E transforma-se, ao longo da história e do tempo. Como ele diz, somos, ao longo da vida, muitas pessoas.
Em A Rainha Ginga regressa ao romance histórico e ao gosto pelo estudo da língua.
Gosto muito de romances históricos. Mas este livro junta tudo. A partir de certa altura, nos meus livros, tentei usar este português global que eu frequento e que faz sentido: o português de todos os territórios, de todas as variantes. Neste romance, vou mais além: uso o português de todas as variantes e de vários tempos. Tudo isto é a nossa língua. É muito divertido ressuscitar uma palavra que estava esquecida. Aqui, tive a ajuda importante de A História Geral das Guerras Angolanas, de António de Oliveira Cadornega [1623-1690, militar e historiador português, radicado em Angola]. Ele foi contemporâneo da rainha Ginga, e já trabalhava as palavras das línguas angolanas, sobretudo do quimbundo, introduzindo-as no português. Imagino que não exista mais nada assim: um texto do século XVII já com português africano. É impressionante.
Aqui, há outras ideias impressionantes: o facto de os escravos terem também escravos seus; o relato do confronto de Musungo (personagem real), um capitão negro no lado português, e um português de Évora (inventado), soldado da Ginga; ou o facto de que “qualquer um podia ser branco, bastava ser rico e falar português…”. Cor, nacionalidade, estatuto, tudo era fluído?
Sim. A História é muito mais interessante do que aquela, a preto e branco, com bons e maus, que a gente aprende. Tudo é fluído. É isso que tento mostrar no livro. Há dados históricos assombrosos. Como é que, por exemplo, os índios brasileiros vão combater em Angola, quer do lado dos holandeses quer, depois, do lado português, com a armada do Henrique Dias [brasileiro, filho de escravos libertos, que lutou contra os holandeses aquando das invasões do Brasil]? A História com H grande está cheia de episódios que furam completamente os estereótipos. E há factos que parecem puro realismo mágico, como por exemplo, a história do Almirante Jol [1597-1641, corsário da Companhia das Índias Ocidentais holandesas], que, depois de conquistar Luanda e São Tomé aos portugueses, morre, delirando com a malária.
Em A Rainha Ginga, como equilibrou verdade e ficção?
Este livro está muito colado à realidade histórica. Claro que as fontes podem ter ficcionado… Hoje, sabemos que o Cadornega errou muito, nomeadamente nas datas. Tentei que o livro seguisse a história que nós conhecemos. Isto é um romance, mas o que foi ficcionado está dentro de uma lógica histórica. O meu livro não é um samba do crioulo doido, como muitos romances que são uma confusão de datas, de épocas, de línguas, de tudo… Os historiadores não ficarão muito sobressaltados.
O almirante Jol, com a sua perna de pau, é real?
É real. Eu hesitei em colocar o Jol [no romance] porque as pessoas vão pensar que é um cliché, uma invenção estúpida. Mas é a pura realidade. Pensa-se que ele terá sido o pirata que deu origem a esse mito da perna de pau. Na época, ele era tão importante que os espanhóis chamavam-lhe simplesmente El Pirata.
E Tomé dos Anjos, esfolado e transformado em espantalho de palha?
Essa é uma das minhas histórias preferidas, mas inventei-a de fio a pavio.
Henda, a escrava-cadeira da rainha Ginga, transformou-se mesmo numa mãe de santo?
É a escrava que faz parte da mais famosa história sobre a Ginga: no primeiro encontro com o governador português [João Correia de Sousa], a rainha senta-se sobre essa escrava. Não se sabe quem é nem o que lhe aconteceu. Ninguém se preocupa com o assento da rainha… Gostei da história que criei para ela, fiquei feliz com esse remate.
João Maurício de Nassau, no século XVII, diz: “A verdade é que os portugueses sempre foram mais africanos do que europeus”. Porquê?
Ele realmente diz isso, não exatamente assim. Há uma expressão semelhante que retirei de um testemunho holandês. Essa era a ideia dos holandeses relativamente aos portugueses. E, na época, era verdade. Quem eram os portugueses? Eram os levantinos. Portugal tinha tido, durante oito séculos, a presença árabe. Os portugueses eram aquele povo mulato que estava ali no extremo da Europa, mas que não fazia parte.
A dada altura, o cigano Lobo responde a Francisco José: “A minha pátria é onde estão os meus pés.” Isto é também o escritor a falar?
Não (risos). Eu poderia dizer que a minha pátria é onde estão os meus filhos, os meus afetos. Mas sim, já o disse, a nossa identidade constrói-se caminhando.
Ginga – Rainha-rei
A rainha Ginga (c.1583-1663) governou os reinos de Ndongo e de Matamba, no Sudoeste africano, fazendo e quebrando alianças com os colonizadores portugueses ao longo de várias décadas. Posteriormente, aliar-se-ia com os colonizadores holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, que ocuparam Luanda entre 1641 e 1648. O seu título real em língua quimbundo – Ngola – inspirou os portugueses na denominação de toda a região – Angola. Mas, por via das suas duas conversões ao cristianismo, estratégia política para cimentar tratados de paz com os colonizadores, foi também conhecida como Dona Ana de Sousa, ou Ngola Ana Nzinga Mbande. A sua ascensão política começou como emissária do irmão, num encontro com o então governador português. Mas numa intrincada luta de poder, a que se juntou uma vingança pelo assassinato de um filho seu, acabaria por envenenar o irmão e assumir a liderança – na corte faustosa e no campo de batalha. Figura ímpar e libertária, que se autointitulava Rei, entre outras audácias, morreria aos oitenta anos.