Se abandonassem Jafar Panahi no deserto, ele faria um filme apenas com os grãos de areia. Panahi é apenas um dos realizadores a sofrer na pele a violência do regime de Teerão, mas a extrema qualidade e originalidade do seu cinema transformaram-no num dos maiores símbolos de resistência pela arte. Em Ursos Não Há, não chegou ao extremo de Isto Não É um Filme, a obra que fez em prisão domiciliária, mostrando até que ponto a necessidade aguça o engenho. Ainda assim, é um filme corajoso e desconstruído, em estilo de autoficção, em que se expõem os contrastes e contradições do Irão urbano e rural, tendo sempre como pano de fundo a fuga do país.
Panahi faz dele próprio. É um realizador consagrado, que se refugia numa aldeia próxima da fronteira com a Turquia e dirige remotamente o filme que está a ser rodado na capital – sobre um casal que tenta encontrar forma de fugir para a Europa.
Há uma desconstrução pirandelliana, por camadas, entre realidade e ficção. Os planos atravessam-se. Em simultâneo, o realizador vive o dilema e a possibilidade da fuga, em espelho com um filme que está a fazer. No meio disto, mostra e questiona as tradições ancestrais e medievais da aldeia onde se refugia. Tudo num justo equilíbrio entre o drama e a ironia.
Ursos Não Há é um filme de grande inteligência e sobriedade, que suscita questões primordiais do universo iraniano, numa contestação subtil, ao mesmo tempo que inova e reinventa a forma de contar histórias, que é um dos ex-líbris do cinema e da cultura persas.
Aproveitando o momento alto do cinema iraniano, que figura consecutivamente nas listas dos melhores filmes do ano, a Midas repõe em sala duas obras de Abbas Kiarostami, referência tutelar para as gerações que se lhe seguiram.
Ursos Não Há > De Jafar Panahi, com Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobaseri, Bakhtiar Panjei, Mina Kavani > 106 min.