Pode um filme ser ao mesmo tempo realista e fantástico? Uma resposta está em Alma Viva, a longa de estreia de Cristèle Alves Meira que quase nos faz acreditar em espíritos. A base é um estilo quase documental, com intenções antropológicas, que nos mostra a vida de uma aldeia em Trás-os-Montes, recorrendo aos próprios habitantes, transformando-os em atores (de início parecem apenas intérpretes da sua própria vida).
O fantástico entra no filme de forma naturalista. Em momento algum Alma Viva é um filme que nos prega sustos. O sobrenatural apodera-se lenta e organicamente do contexto porque, na realidade, faz parte dele. Esta é uma história de bruxas, possessões, espíritos e pactos com o diabo que integra o imaginário da aldeia, a sua própria realidade, fundada em lendas. Aqui não há concessões a interpretações dúbias: no filme de Cristèle os espíritos existem.
Este naturalismo em contexto inesperado consegue-se, em boa parte, graças à relação da própria realizadora com aquele espaço e contexto. Aquela é a aldeia da sua mãe, onde ia passar férias no verão, como muitos emigrantes, e a casa principal da ação é mesmo a casa da sua avó (devoluta, reaproveitada para o filme).
Cristèle arrisca bem no recurso a “não atores”, juntando-os a alguns profissionais, com destaque para a magnífica Ana Padrão, provocando algumas dinâmicas e bons equilíbrios. Mas o mais notável e conseguido risco é a presença de Lua Michel (no papel de Salomé). A jovem atriz consegue carregar o filme inteiro com o seu olhar. Essa perspetiva madura e infantil é o verdadeiro alicerce da ação.
O próprio filme está pintado como se de um conto se tratasse, com o exacerbar de alguns traços, como os sons da Natureza, as estrelas, a própria paisagem. Há um trabalho notável de Rui Poças, associando a este estilo naturalista uma fotografia tão cuidada que dá vontade de emoldurar alguns frames.
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Alma Viva > De Cristèle Alves Meira, com Lua Michel, Ana Padrão, Jacqueline Corado, Ester Catalão > 85 min