Mal o filme começa já lá estamos dentro. De forma intensa envolvemo-nos numa exuberante peça de teatro popular, com todos os traços humanos, de comoção e sátira. O Rei do Riso deve claramente a Fellini (mas também a Jean Renoir). Ou, se calhar, é o próprio Fellini, sempre aficionado das expressões populares de cultura, que tinha também como referência Eduardo Scarpetta, biografado no filme, expoente máximo do teatro napolitano do início do século XX, ator e autor de comédias, que acabou por ficar conhecido como o criador da personagem Felice Sciosciammocca.
Em O Rei do Riso tudo é excessivo e expansivo como costuma acontecer no Sul de Itália. Scarpetta é ele próprio um retrato da Belle Époque napolitana. Artista excêntrico, que espalha filhos pela cidade, mas não deixa de ser um homem de família, num justo intermédio ou alternância entre a bestialidade e a comoção. O filme, que passou no Festival de Veneza, espalha traços de comoção, até porque há sempre uma ideia nostálgica de um certo teatro que deixou de existir, um pouco ao estilo de Cinema Paraíso. E sem dúvida que Scarpetta, em mais uma notável interpretação de Toni Servillo, é uma personagem bigger than life.
A trama principal que puxa a história (que se alimentaria bem apenas do seu contexto e do seu ambiente) faz uma ponte para a atualidade. Porque, de certa forma, discute-se em tribunal o direito à citação, que é uma das ferramentas do pós-modernismo.
Scarpetta usurpa um texto de Gabriele D’Annunzio, escritor respeitado na altura, para o parodiar. Há, logo à partida, um conflito muito estimulante entre arte popular e arte erudita. Discutem-se as essências e as valias, sendo que o filme, da forma como está feito, é um hino à arte popular, mostrando-a como algo nobre, que não se tem de submeter a formas mais intelectualizantes.
Por outro, Scarpetta é acusado de plágio. E há aqui uma interessantíssima defesa do direito à perspetiva, à reformulação. Tal é extremamente moderno e avançado para a época. Porque no fundo, mais do que a questão do plágio em si, está o que Mick Hume chamou “direito a ofender”. Ou seja, falamos nos limites do humor e, ao mesmo tempo, dos limites da criação. Mario Matrone, realizador com um longo currículo mas pouco conhecido em Portugal, consegue aqui construir uma obra fascinante, que deambula em volta de um determinado ambiente, já em decadência, mas ainda assim encantatório.
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O Rei do Riso > De Mario Martone, com Toni Servillo, Maria Nazionale, Cristiana Dell’Anna > 133 min