É um dos paradoxos da criação: artistas que almejam retratar o povo ao mesmo tempo que se afastam dele. Isto é particularmente notório nos estilos mais dedicados às realidades sociais. É o caso dos rappers americanos, cujo sucesso os afasta dos guetos em que alicerçam a sua linguagem, ou dos escritores que se isolam nas suas torres de marfim como observadores de realidades que não vivenciam.
Ouistreham – Entre Dois Mundos é sobre tudo isto. O filme, a partir de um livro de Florence Aubenas, acrescenta uma camada ao discurso neorrealista ao mesmo tempo que reflete sobre os fossos sociais na moderna sociedade francesa, um pouco ao estilo de Stéphane Brizé/Vincent London. Aqui expõe-se uma realidade invisível – ou que ninguém quer ver – mas que também não é o muito retratado e debatido cosmos intercultural e guetizado dos subúrbios franceses. Tal como Brizé, Emmanuel Carrère mergulhou no mundo da classe operária, dos desclassificados com trabalhos duros (neste caso, as mulheres da limpeza). Nesse sentido, há uma noção mais clássica da estratificação social e da luta de classes, afastando outros substratos sociais mais contemporâneos.
Essa base ideológica do filme é por si só cativante e, de alguma forma, corajosa, pois confronta destemidamente a elite e a burguesia com um mundo concreto e quotidiano com que se cruzam ao virar de cada esquina. Contudo, Carrère desdobra este preconceito numa segunda questão moral. Marianne, a escritora protagonista do filme, inscreve-se no centro de emprego e acaba por integrar uma equipa de limpezas. Algo próximo do que nas ciências humanas se chama de sociologia participante. Ela vai a fundo, limpa sanitas e urinóis, aprende a fazer camas em dois minutos e cria uma rede de cumplicidade com as colegas, que se transformam nas personagens do seu livro. Mas, no final de tudo, sobram questões morais. É legítimo descer à subcave do elevador social, só para ver o que lá se passa, e depois voltar logo a subir?
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Ouistreham – Entre Dois Mundos > De Emmanuel Carrère, com Juliette Binoche, Hélène Lambert, Louise Pociecka > 106 min