Apenas cinco anos antes do Maio de 68, movimento de todas as libertações que, assim como a Revolução Francesa, partiu de França para o mundo, o “país das Luzes” vivia mergulhado numa densa floresta de trevas em termos sociais e morais. É o que se mostra no filme de Audrey Diwan que, com alguma surpresa, ganhou o Leão de Ouro no último Festival de Veneza. Um intenso retrato social e estudantil de uma realidade que parece muito distante, mas que, na verdade, é recente. Pode e deve ser vista em espelho para outros lugares do mundo. Em França, o aborto foi despenalizado nos anos 70, em Portugal, apenas em 2006. E há países onde o que se descreve no filme é a realidade contemporânea (incluindo alguns estados dos EUA).
Diwan adapta o romance semiautobiográfico de Annie Ernaux, que conta a sua experiência traumática de um aborto clandestino enquanto era estudante universitária, no início da década de 60. Deparamos com a geração que antecedeu aquela que fez o Maio de 68 e percebemos como o país, símbolo da liberdade, era mais retrógrado do que podíamos imaginar. Nesta opressão moral e legal adivinha-se, ou percebe-se, a revolta política, social e sexual que se desencadeou no final da mesma década.
Em todo o filme acompanhamos o périplo de Anne, progressivamente mais aflita, numa corrida contra o tempo, a tentar resolver uma gravidez indesejada. Dificilmente consegue ajuda. À luz da lei francesa da época não só a mulher mas também os seus cúmplices ficavam sujeitos a pena de prisão. Pelo caminho, nesta corrida desesperada de uma aluna brilhante que quer prosseguir os seus estudos, desvenda-se uma sociedade machista, temerosa, moralista e conservadora, desde os próprios colegas a médicos com requintes de malvadez.
O Acontecimento é o mais fascinante e inebriante filme sobre o aborto clandestino desde o já clássico do novo cinema romeno Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, de Cristian Mungiu.
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O Acontecimento > De Audrey Diwan, com Anamaria Vartolomei, Kacey Mottet Klein > 97 minutos