Estamos perante uma espécie de Santa Teresa de Ávila promíscua, que leva à letra a designação monástica de “noiva de Cristo” e quase faz coincidir o êxtase espiritual com o sexual, numa descoberta do corpo como caminho para o espírito, mas também para um sucesso místico e terreno.
Paul Verhoeven, realizador que, depois de Robocops e afins, se redescobriu como autor europeu, adapta ao cinema a história da freira Benedetta Carlini, trazida a público, nos anos 80, pela historiadora americana Judith C. Brown, numa das raras descrições de práticas lesbianas antes do século XVIII. Há aqui, claro, um potencial fetichista, que serve para besuntar o filme com o mel dos prazeres proibidos, chamando a atenção de um público mais vasto. Verhoeven, contudo, não se fica por aí.
Mais do que os devaneios eróticos, interessa a Verhoeven debater o misticismo. O filme faz um retrato cru da época, abordando a miséria e a luta pela sobrevivência de forma impiedosa. O próprio misticismo funciona como boia de salvação. Bartolomea, filha de um pastor que abusava dela, salva-se ao ingressar no convento; Benedetta, filha de pais abastados que pagaram o dote para que ela ali entrasse, tira proveitos mundanos das suas virtudes místicas. A jovem freira encontra um paralelo entre o êxtase espiritual e o sexual, enquadrando-os como duas facetas da mesma realidade, ambas pertencentes ao divino – uma virgem esculpida com as medidas certas torna-se objeto de oração e de prazer.
Ao contrário do que faz Lars von Trier, em Ondas de Paixão (filme-tese abjeto), Verhoeven encontra margem na doutrina para provocar a dúvida: mesmo sendo fisicamente explicáveis, as chagas e revelações de Benedetta podem ter uma dimensão mística. E é sobretudo através desse tortuoso e frágil limbo que o filme se sustenta.
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Benedetta > De Paul Verhoeven, com Virginie Efira, Daphne Patakia, Charlotte Rampling > 121 minutos