“Água do rio que lá vai / Ai quem ma dera recolher / A água corre e canta bem / Cantar com ela é um prazer.” Ouvem-se com estranheza os versos da canção popular cantada pelo Grupo Coral da Associação Reformados de Riba d’Ave (ARRA), convidado a participar no segundo ato de Paisagem Efémera – Industrial e Urbana. Na verdade, mal se sente a presença do rio enquanto se desce a avenida principal da vila e, no entanto, ele ali está, escondido por casas, fábricas e outros edifícios, rendido a uma perspetiva utilitária, enquanto recurso da indústria têxtil. Dominante, essa sim, é a organização urbanística “ferreirina”. Falamos de Narciso Ferreira, um dos maiores industriais portugueses, e da obra que deixou e continua a marcar as ruas desta freguesia do concelho de Vila Nova de Famalicão.
Um guia turístico, interpretado por Bruno Martins, diretor artístico do Teatro da Didascália, detém-se perante dois dos edifícios mais emblemáticos: o teatro, recentemente reabilitado, e o antigo quartel dos bombeiros, entregue ao abandono, fronteiros um ao outro. Será esta localização uma coincidência? “Os teatros sempre foram locais inflamáveis”, justifica a personagem. E neste espetáculo-percurso também se procura atear consciências e reacender memórias.
As descargas das fábricas de que o rio Ave padeceu ao longo de dezenas de anos mataram qualquer imagem bucólica e vontade de o usufruir em lazer. Neste segundo ato de Paisagem Efémera – o primeiro, em maio, teve como cenário a Fábrica de Sampaio Ferreira, encerrada em 2005, e deu voz aos operários anónimos que permanecem na sombra desta antiga “glória” da indústria têxtil –, aproveita-se o decadente quartel dos bombeiros, na frente ribeirinha, para lançar a pergunta: “Quando falamos das vantagens do mundo moderno e civilizado, estamos exatamente a falar de vantagens para quem e a que custo?”.
Bruno Martins rodeou-se de outros criadores e intérpretes, cada um responsável pelos diferentes quadros do espetáculo, que adota uma linguagem metafórica e poética. Do guia turístico entusiasmado, passa-se para outro mais sombrio, representado por António Júlio, a deixar-se levar pelos espaços abandonados e a encontrar outras fantasmagorias nas suas entranhas, de quem se confronta consigo próprio.
No antigo dormitório do quartel, o corpo da atriz Margarida Gonçalves, envolto por uma manta de plástico, carrega os detritos vindos do Ave e questiona-se sobre o seu futuro incerto e nebuloso. Já na escadaria, ouvem-se as vozes do grupo coral, conduzidas por Rui Souza, a falar sobre lavadeiras e a sua relação confidente com o rio, depositário de histórias de amor e desamor, mexericos e desabafos. “Vamos atravessar o edifício e acabar a olhar para a outra margem, a trabalhar sobre esta ideia do que é estar à margem de determinada sociedade que acabou por tratar mal o rio… está extremamente poluído, praticamente em coma, e, apesar do tratamento das águas, continua a ter descargas consecutivas”, conta o diretor artístico.
Para o final do ano, ficará o terceiro ato de Paisagem Efémera. O culminar de um processo artístico de cerca de dois anos à volta do território onde está sedeado o Teatro da Didascália (mais concretamente em Joane, outra freguesia de Vila Nova de Famalicão). A consolidar raízes e a promover reflexões.
Paisagem Efémera – Industrial e Urbana > Antigo Quartel dos Bombeiros de Riba d’Ave, R. Conde de Riba de Ave, Riba d’Ave > T. 92 430 5850 > 21-24 out, qui-dom 21h > €5