1. “Ricardo III”, Teatro da Trindade: O inverno do nosso descontentamento
O teatro não se cansa de nos avisar. Shakespeare e a atualidade das suas peças também não. Em Ricardo III, e nesta encenação de Marco Medeiros, a participação do público na ascensão ao poder de um tirano é tornada bastante visível, para que nos apercebamos de que estamos no papel de cúmplices. E, sim, estamos em desvantagem perante o confronto com o tirano, simplesmente porque seguimos as regras democráticas e ele não.
A peça, escrita no final do século XVI, é baseada na ascensão e na queda de Ricardo III de Inglaterra, que conseguiu destronar o irmão, Eduardo V, através de teias maquiavélicas de intriga e manipulação na corte. No palco do Teatro da Trindade, não vemos um cenário medieval mas um ambiente industrial, futurista, a aludir ao caráter intemporal da peça. Os figurinos são da autoria de Dino Alves.
Diogo Infante deixou a exacerbação dos tiques físicos, a corcunda, a deformação do andar, para trás. “O trabalho que o Diogo e eu fizemos foi o de quebrar a própria regra, que é o que o Ricardo III faz – ele quebra regras, ele passa barreiras, atropela”, explica Marco Medeiros. “É essa a linguagem do espetáculo, é quebrar com o belo, quebrar com o correto, com a forma estabelecida – tornar tudo inesperado.” A linguagem é mais crua, mais agressiva. “Serve para nos alertar, de forma mais excessiva, para um problema que perdurou ao longo dos anos: a ambição pelo poder desmedido e centrado apenas numa única pessoa. A que, por outras palavras, podemos chamar ditadura.” Teatro da Trindade > Lg. da Trindade, 9, Lisboa > T. 21 342 0000 > até 31 jan, qua-sáb 20h30, dom 16h30 > 5-6 dez, 23-25, 30 dez-1 jan 2021 não há espetáculo > €8-€18
2. “Só Eu Escapei”, Teatro Aberto: Dancemos
Só Eu Escapei poderia ser o reduto mental de que nos socorremos sempre que nos sentimos em perigo. É como se essa expressão fosse sinónimo de “só acontece aos outros” – a unidade mínima de socorro que nos garante que, mesmo não fazendo nada para travar a cavalgada gutural em que o mundo se encontra, iremos conseguir, de alguma forma, escapar ilesos.
No palco transformado em jardim estão quatro mulheres, reformadas, a deitar conversa fora – falam do passado, da família, das trivialidades do dia, das séries que andam a ver. Com interpretações de Catarina Avelar, Lídia Franco, Márcia Breia e Maria Emília Correia, a conversa vai sendo interrompida por momentos cáusticos. Tudo fica escuro, um globo sobressai do fundo como se fosse uma enorme bola de discoteca para servir de ecrã a imagens de pura distopia e Márcia Breia faz discursos sobre como produtos químicos vazaram, a população teve de passar a andar de máscaras de gás, mas o SNS não conseguiu garantir equipamento para todos.
“Nunca pensámos que o texto fosse tão atual”, diz o encenador João Lourenço, referindo terem parado os ensaios da peça quando surgiu o confinamento. “A Caryl Churchill escreveu isto antes [da eleição] do Trump, do Bolsonaro, antes do Brexit. É fantástica a visão desta mulher que, tendo a sua idade [82], é a mais jovem dramaturga de Inglaterra, para mim. Sempre foi. Ela sempre procurou as coisas diferentes.” Teatro Aberto > Pç. de Espanha, Lisboa > T. 21 388 0089 > até 28 fev, qua-sex 19h > €17
3. “A Coragem da Minha Mãe”, Teatro da Politécnica: Auschwitz, com bilhete de ida e volta
A tez muito pálida, cor de pérola, e o olhar vazio, de uns belos olhos esverdeados, são tão hipnotizantes que nos fixamos naquela cara, sem conseguirmos desviar o nosso próprio olhar. A força daquela presença – um rosto, um corpo – é como uma tela em branco, onde inscrevemos o nosso imaginário, a partir das palavras que ouvimos a personagem ao lado dizer. Antónia Terrinha e Pedro Carraca interpretam os papéis de mãe e de filho em A Coragem da Minha Mãe. O filho relata, na vez da mãe, a aventura por que a própria passou ao ser levada para um campo de concentração nazi.
A esta história transmitida via tradição oral, somam-se várias vozes em off que chegam até nós vindas de várias direções. “São vozes sonhadas, lembradas. A única voz que tem corpo é a do oficial nazi que tem uma cena de representação autêntica”, esclarece Jorge Silva Melo, “porque as outras são coisas que ela conta, que não conta, que o Carraca conta, que o Carraca repete…” O episódio é verídico. A mãe de Tabori, autor da peça, foi levada juntamente com quatro mil judeus de Budapeste para Auschwitz, em julho de 1944. “Este texto conta um dia na vida da senhora que ia jogar cartas a casa da irmã, que passou por Auschwitz e voltou para casa da irmã para jogar cartas.”
Elsa Tabori só falou da história ao filho, que perdeu o pai em Auschwitz, em meados dos anos 70. Foi nessa altura que George começou a escrever a peça. O autor permite-se algumas liberdades em termos narrativos. Há partes inventadas, “por exemplo, aquela cena em que a senhora é presa é como um gague de filme mudo: o polícia a fugir com o chapéu de chuva”, conta Silva Melo. “Tabori achava muito importante fazer troça dos nazis. Não era só denunciar, era fazer troça.” Teatro da Politécnica > R. da Escola Politécnica, 54, Lisboa > T. 21 391 6750 > até 19 dez, ter-sex 19h, sáb 16h e 19h > €6-€10