“Lembrai-vos sempre de que não há ervas daninhas nem homens maus: há, sim, maus cultivadores.” As palavras de Os Miseráveis, de Victor Hugo, servem de sinopse moral para o filme de Ladj Ly, inspirado no clássico da literatura francesa. Mas onde se encontram mais afinidades é em O Ódio, filme basilar de Mathieu Kassovitz, de 1995. Há aqui uma espécie de atualização do estado da arte da panela de pressão social dos subúrbios das grandes cidades francesas. E replica-se a estrutura de trio de protagonistas.
Se em O Ódio eram um negro, um árabe e um judeu, amigos e miúdos do bairro, em Os Miseráveis é um negro, um branco e um campónio, polícias de uma brigada especial. E isso, claro, traz-nos uma mudança de perspetiva. Inevitavelmente, colocamo-nos ao lado de Ruiz, o agente que chegou da província, aparentemente portador imaculado das regras mínimas de dever cívico e profissional. O bairro é uma espécie de faroeste que reinventou as suas próprias regras, de forma a apaziguar grupos rivais. A polícia faz parte do jogo, assim como o presidente da junta, o imã (o mais sensato), os ciganos do circo e os nigerianos. É uma paz podre. A panela de pressão está sempre à beira de rebentar. E quando, por incidente, realmente rebenta, apercebemo-nos de que os verdadeiros miseráveis são as crianças, vítimas de tudo e de todos. E é através delas que o filme dá o seu golpe de asa, inspirando-se novamente no livro, com algum brilhantismo na construção do argumento e na realização.
Ladj Ly nasceu no Mali. Começou por fazer d’Os Miseráveis uma curta-metragem e agora converteu-a em longa. O filme tem tido grande impacto e gerado debate. Foi, mesmo, nomeado para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (a concorrência era forte) e fez de Ladj Ly a maior revelação do cinema francófono dos últimos anos.
Os Miseráveis > De Ladj Ly, com Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djebril Zonga > 104 minutos