Há desencontros que duram uma vida inteira. O realizador Karim Aïnouz revela um talento raro para o melodrama que há quem julgasse estar apenas ao alcance dos melhores autores anglo-saxónicos. Se em Mulherzinhas, a premiada adaptação do livro de Louisa May Alcott, por Greta Gerwig, paira uma enorme nuvem de nostalgia, em A Vida Invisível, adaptação de um romance de Martha Batalha, entramos profundamente na melancolia. O filme tem a dimensão e a estrutura de uma saga e lança diferentes pontos de reflexão sobre o Brasil moralista e retrógrado dos anos 40/50, com óbvias repercussões na atualidade.
Na base, uma família, próxima do ambiente sugerido pela telenovela Imigrantes. Os pais portugueses – ele padeiro, ela doméstica –, as duas filhas já nascidas no Brasil e, de alguma forma, tentadas pelo glamour cosmopolita do Rio de Janeiro. Guida, a irmã mais velha, segue pelo risco e foge com um marinheiro grego – apaixonando-se mais pela ideia de fuga do que pelo próprio marinheiro. Eurídice escolhe um caminho mais seguro, com um casamento aprovado pelos pais, mas alimenta, ainda assim, o sonho de ir estudar piano para Viena.
A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, recebeu o prémio Un Certain Regard, no Festival de Cannes, e foi indicado pelo Brasil para os Oscars. É uma boa amostra da diversidade e qualidade crescentes no cinema brasileiro contemporâneo.
Em ambos os percursos, as expectativas são goradas, não por incapacidade própria, mas pelos obstáculos levantados por uma sociedade machista, implacável perante os desejos e sonhos de autonomia das mulheres. Afinal, A Vida Invisível é, na sua essência, um enorme filme sobre a condição feminina no Brasil dos anos 50, tão bem resumida na deixa de uma das personagens, que fala do azar de nascer mulher. É essa louca deriva machista, de preconceito e discriminação – primeiro do lado do pai, depois do lado do marido e, finalmente, da sociedade no seu todo – que provoca a angústia de um desencontro quase eterno entre as duas irmãs. É, pois, também um filme sobre a saudade, uma saudade profunda, talvez mais dura do que a própria morte.
Karim Aïnouz é hábil na gestão do enredo, ousado na linguagem estética e na abordagem despreconceituosa (até inclui uma ereção masculina em primeiro plano), e conta com ótimos atores, como Gregório Duvivier, num inesperado papel dramático, e Fernanda Montenegro.
A Vida Invisível > De Karim Aïnouz, com Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier, Fernanda Montenegro > 139 min