Tem um vestido de corte recatado, mas vermelho e de veludo. Tem uns sapatos de pouco salto e desgastados, mas igualmente vermelhos. Tem um semblante cansado, mas um cabelo de caracóis fartos. Esta é Zerlina, a velha criada da casa do barão e da baronesa, que, numa tarde domingueira de verão, entra no quarto de hóspedes sem se fazer anunciar e começa a contar a A. as peripécias da vida sexual daquele meio, incluindo as suas. As traições, o desejo, os amantes, as relações de aparência, tudo serve para um novelo de hipocrisia e de sarcasmo sociais a partir do qual Zerlina construiu a sua identidade, desde que veio, ainda miúda, servir para a cidade. Este é o texto escrito pelo austríaco Hermann Broch, mais conhecido por A Morte de Virgílio, que João Botelho leva ao palco da sala de ensaio do CCB.
“Ela não tem esse tipo de consciência – se aprende ou deixa de aprender. Acho que é mais ‘as coisas são assim e têm de ser feitas assim e eu ponho e disponho’. No fundo, ela acha que educa e que a outra [a baronesa] não vale nada”, refere a atriz Luísa Cruz, a criada Zerlina, que faz o monólogo para um canapé vazio, a sugerir uma personagem omnipresente que a aproxima do público. As peças cénicas são da autoria do artista plástico Pedro Cabrita Reis. “O que é uma criada? Não é do povo, não tem uma vida própria dentro da sociedade; não é a senhora, para quem trabalha. No fundo, vive numa terra-de-ninguém.” E é nessa não existência, nessa não visibilidade, que ela constrói a sua identidade e o seu poder. Não lhe sendo dada a possibilidade de amar – não tem vida própria, não se casou, não tem filhos –, agarra-se às possibilidades de desejar.
“Passo a vida a fazer teatro nos filmes. Agora vou tentar fazer um bocadinho de cinema em teatro. Essa história do claro e escuro, das elipses a negro, da luz pontual. A questão é que no teatro não há découpage [recorte]. Por mais que eu escureça tudo, as pessoas veem tudo em plano geral, porque o preto também se vê”, diz o cineasta João Botelho. “O cinema é aldrabice. O teatro é outra verdade.”
A Criada Zerlina > Centro Cultural de Belém > Pç. do Império, Lisboa > T. 21 361 2400 > até 6 mar, seg-qua 21h > €12-€14