Aviso: Escrever sobre a peça de teatro Alice no País dos Bordéis não é tarefa fácil. Decidimos fazer tal e qual como dizemos às crianças: existem palavras que se podem ouvir mas não se devem repetir. Neste espetáculo, em cena na Pensão Amor, em Lisboa, até ao dia 10 de setembro, existem muitas dessas palavras, pois.
Era, então, uma vez uma personagem chamada Alice, interpretada pela atriz Sofia de Portugal e por Francisco Beatriz (em sessões diferentes). Vivia na Pensão Amor, no Cais do Sodré, em 1962. O seu vestido curto, com decote generoso, e a sua linguagem aliada a uma expressão corporal sensual, davam indícios sobre a sua profissão. Alice era uma meretriz convicta e orgulhosa, como ficará provado ao longo dos 25 minutos desta peça da autoria de Roger Mor, com encenação e interpretação de Sofia de Portugal.
A surpresa começa logo na altura da compra do bilhete. À entrada, depois do pagamento (pode ou não incluir jantar), é dado ao espectador o Livrete Sanitário, fornecido pelo Governo Civil do Distrito de Lisboa – o mesmo que as meretrizes eram obrigadas, por lei, a ter para exercer a profissão. Nesse caderninho constavam os carimbos com as inspeções sanitárias (aprovada, faltou ou tratamento) e algumas notas, como aquela que constava da nossa caderneta: “meretriz” reconhecida por serviços prestados ao Estado.
Já devidamente “encartados”, escolhemos uma cadeira livre no bar da Pensão Amor. Há de tocar um sino, a anunciar o início do espetáculo. Somos levados “até 19 de setembro de 1962, dia em que Salazar proíbe a prostituição, ordenando o fecho dos bordéis e acabando com o estatuto das matriculadas em Portugal. Mas Alice, conhecida como a Louca, devido ao seu comportamento imprevisível, vê nesta mudança uma oportunidade e decide dar um novo rumo à sua vida”, explica o autor, Roger Mor. Por esta altura já saímos da sala do bar e fomos encaminhados para um piso intermédio, entre o rés-do-chão e o primeiro andar, onde se passará o resto da peça.
Nestas duas assoalhadas, podem ver-se quadros com fotografias de Marilyn Monroe, da Madame e do seu marido Senhor Alfredo, proprietário da Pensão Amor, entre outras personagens. “O nosso querido António, que é um maroto, quer fechar os bordéis”, diz Alice, olhando para a imagem de António Salazar, enquanto lhe faz carícias e se ri. “Nós é que somos as verdadeiras embaixatrizes desta cidade”, continua a meretriz, que chama de botõezinhos a todos os presentes.
Mais tarde, recorda e mostra o livro Alice no País das Maravilhas, escrito por Lewis Caroll, o primeiro que leu na sua vida e que serviu de inspiração a esta peça: “Falo com coelhos, como cogumelos e fico gigante e sou amiga da Dama de Espadas”, diz com graça, sensualidade e um à-vontade contagiante.
Já na segunda sala, continua a contar a sua vida de meretriz, desde a infância até aquela data, mostrando o armário dos perdidos e achados, onde se podem ver camisas, luvas e gravatas, bem como peças de vestuário da Madame. Haverá mais para ver, mas deixaremos ao leitor a descoberta.
Depois de ver a peça, há histórias à mesa
No final de Alice no País dos Bordéis, quem quiser pode sentar-se à mesa e provar a ementa Fecha as pernas e abre a boca, dividida em oito momentos e confecionada pelo chefe Guilherme Spalk. Tudo começa com a distribuição de um kit de maquilhagem: o batôn tem sabor a mexilhão; o blush é feito de pinhão e açafrão, e a esponja de pão; e o boião de creme tem como principal ingrediente o queijo de Azeitão. São estes os sabores dos Preliminares neste jantar que se há de estender até perto da meia-noite. “Abram a vossa gaveta secreta, todos nós temos uma, libertem-se e estejam à vontade, botõezinhos”, anuncia o chefe Guilherme Spalk.
Sentados num pequeno balcão para oito pessoas (há um maior na sala ao lado, para dez), segue-se a degustação do prato Despertar dos Sentidos, com foie gras, ceviche e churro. Pelo meio, dá-se um Beijo Francês com o linguado, ostra, espinafres e chá verde e prova-se o Fogo de Paixão, feito com atum e ruibardo. Depois há que pôr a Boca naquilo, ou seja, na cebola, miso, cogumelos e gema de ovo.
Em Desejo Carnal, prova-se uma sugestão feita com faisão e amêndoas, bolbo de aipo e milho doce. No sétimo momento, intitulado Aquilo na mão, pede-se aos comensais que confiem no chefe e na sua equipa, por isso, é necessário vendar os olhos e, sem medos, esticar a mão em cima do balcão. Na palma sentem-se “coisas” frias e quentes, enquanto se ouvem risos e comentários marotos na sala. Por fim, o chefe pede que se leve à boca a mistura e que se saboreie a amora, o morango e o figo seco com vinho do Porto.
Encerra-se o jantar com um Orgasmo feito de chocolate, doce de leite e limão. No final, os “botõezinhos” despedem-se, de sorriso na cara. Quanto a nós, conseguimos chegar ao fim do relato sem repetir um único palavrão.
Pensão Amor > R. do Alecrim, 9, Lisboa, T. 96 265 0101 > até 28 out, qua-dom 18h30-21h30 (sessões de 30 em 30 m) > €6 (espetáculo), €69 (espetáculo e jantar); sessões especiais com jantar (2 horas duração): 20h (inglês); 21h (português)