O retrato a preto e branco ainda lá está, emoldurado e pendurado na parede. Mas o patriarca há muito que deixou a família. Partiu, sem dar notícias, e para trás deixou a mulher, a sonhar com os pretendentes que tinha quando era nova, possessiva, controladora e preocupada com o futuro; o filho-poeta, sonhador, a pensar no mundo todo que existe para lá do armazém de sapatos onde trabalha; e a filha adolescente, aleijada, tímida, muito nervosa, sempre a ouvir discos antigos na grafonola e a brincar com os seus pequenos animais de vidro. Nesta sala forrada a papel de parede com florzinhas, vemos-lhes os sonhos destruídos, as fragilidades, os rancores. Será aí que hão de receber o amigo do rapaz, numa esperança iludida da mãe de que ele se transforme em pretendente da filha. Ainda ele não chegou e já adivinhamos que tudo se estilhaçará como o vidro das figurinhas na estante. Jardim Zoológico de Vidro é talvez a mais biográfica peça escrita por Tennessee Williams, passada nos anos 30/40, com a América mergulhada na Grande Depressão – ali fala de si e dos seus sonhos de artista, da sua saída de casa, da sua mãe e da sua irmã.
Depois de Gata em Telhado de Zinco Quente e Doce Pássaro da Juventude, o encenador Jorge Silva Melo regressa aos textos do dramaturgo americano, pegando numa peça que fez uma verdadeira revolução no teatro da altura do lado de lá do Atlântico. “Williams foi buscar para o teatro os processos narrativos que o cinema dos anos 40 tinha inventado: a figura do narrador, a voz off, o flashback, as legendas… nesta peça está tudo o que viria a ser o teatro americano depois da guerra e também todo o realismo europeu no teatro e no cinema”, nota o diretor dos Artistas Unidos. “São personagens à flor da pele, à beira das lágrimas, sem história. E que são nossos primos: todos conhecemos pessoas assim, mas na altura foi uma grande surpresa aparecerem no teatro”, acrescenta. Na pequena sala do Teatro da Politécnica, Tom, Laura, Amanda e Jim estão logo ali, numa “proximidade com o espectador que permite sussurrar”, descreve Silva Melo. Uma intimidade exigida por Tennessee Williams numa peça que, sublinha, foi “feita com o coração nas mãos”.
Por cá, habituámo-nos a conhecer a peça de Tennessee Williams The Glass Menagerie como Jardim Zoológico de Cristal, mas Jorge Silva Melo optou pela tradução de José Miguel Silva: “O cristal remetia para o sonho e para a distinção da palavra francesa menagerie [coleção de animais], mas é coisa de gente rica e aqui não há dinheiro. Acho que é mesmo vidro.”
Jardim Zoológico de Vidro > Teatro da Politécnica > R. da Escola Politécnica, 56, Lisboa > T. 21 391 6750 > 27 abr-4 jun, ter-qua 19h, qui-sex 21h, sáb 16h e 21h > €6, €10