A carga dramática de uma sessão dedicada ao livro Morreste-me, de José Luís Peixoto, deixou o público colado à cadeira. As palavras luminosas de José Tolentino Mendonça converteram os presentes ao poder redentor da poesia. O riso invadiu a plateia com o pedido de casamento a Valter Hugo Mãe feito por uma noiva-surpresa, no palco do Teatro Campo Alegre. Em 2016, nas sessões das Quintas de Leitura, muitos foram os momentos únicos e irrepetíveis. “Não existem fórmulas; é deixar uma grande margem de improvisação e de ação aos convidados que se sentem muito pouco controlados e dão corda às palavras”, defende João Gesta, o programador do projeto, apoiado pelo município do Porto. Com lotações ininterruptamente esgotadas, estas sessões dão voz a quem melhor trata as palavras, adotando um modelo que cruza a poesia com a música, a performance teatral e as artes plásticas.
Podem ser “alimentadas pelo sonho e pela utopia”, como diz João Gesta, mas é preciso acrescentar que são preparadas com meses de antecedência e não têm qualquer semelhança com a anarquia das tertúlias ou com a solenidade dos lançamentos de livros. “Fujo do academismo como o diabo da cruz”, confessa o programador. Atento aos novos valores, Gesta deu a conhecer muitos nomes, não só na poesia mas também na música. “Dead Combo, Samuel Úria, B Fachada… muitos estavam a dar os primeiros passos”, recorda. Ao longo de 18 anos, as Quintas de Leitura ainda descobriram e formaram excelentes diseurs, vozes encantatórias como as de Pedro Lamares, Teresa Coutinho, Isaque Ferreira, entre outros. “Ouvir a poesia dita por quem sabe faz toda a diferença. Curiosamente, nem sempre são atores, porque é mais importante a emoção do que a técnica”, defende o programador.
Mais recentemente, João Gesta avançou com os Cafés Literários, nos teatros municipais do Porto, dando palco a artistas da spoken word ou a coletivos poéticos que nasceram na cidade, num formato descontraído, ao final da tarde. Foi o caso dos (In)comuns. Manuela Gomes, Idalinda Fitas e Jorge Pereira conheceram-se nos Laboratórios de Leitura Poética, lançados pelo Teatro Campo Alegre. “Queria aprofundar os conhecimentos de poesia e aprender algumas técnicas de colocação de voz. O resto aconteceu naturalmente, fomos lendo aqui e acolá e tendo alguns convites”, conta Manuela, jurista de profissão. “Na poesia, procuramos a descoberta. São tantos os mundos que se abrem, tantas as formas de sentir e de ver! É um suplemento, dá mais sentido à vida.” Há dois anos, na última quarta-feira do mês, às 19 horas, o coletivo assenta arraiais no Capela Incomum, um wine bar com um ambiente propício a devaneios poéticos. Há sempre um guião predefinido para a primeira parte, associado a um tema ou a um autor, normalmente com acompanhamento musical. Na segunda parte do Poesia à Capela, as intervenções são livres. “O público costuma ser muito conhecedor, não vai lá por distração”, diz Manuela.
De Frida Kahlo a Fernando Pessoa
As noites de poesia no Hotel Selina, também na Baixa do Porto, surgiram por iniciativa dos proprietários da Poetria, a única livraria do País especializada em poesia e em teatro, como forma de estimular as boas relações entre os vizinhos da Rua das Oliveiras. “Têm sido muito interessantes, quase sempre com casa cheia”, conta Francisco Garcia Reis, um dos sócios, juntamente com Nuno Queirós Pereira. O público, muito heterogéneo, tanto se tem encantado pelo universo da artista e escritora Frida Kahlo, temperado pelas músicas do cancioneiro tradicional mexicano, como pelos poetas malditos, com a música de Bob Dylan a cruzar-se com a poesia de Bukowski. As sessões, na última quarta-feira de cada mês, são encomendadas a amigos dos livreiros, desde diseurs a pessoas ligadas ao teatro, sempre com momentos musicais associados. A próxima, marcada para dia 27, será dedicada a Mário Cesariny e terá o nome Uma Máquina de Passar Vidro Colorido. “Há um interesse renovado pela poesia. Algumas pessoas sentiram-se afastadas durante o Ensino Secundário, mas hoje não têm preconceitos e querem conhecer coisas novas”, acredita Francisco Garcia Reis. “A poesia funciona como um escape. Num mundo em que a palavra está tão banalizada, um belo poema pode salvar-nos o dia.”
No Porto, a tradição das tertúlias poéticas vem de longe. Com 31 anos de existência, as noites de poesia do Pinguim Café, à segunda-feira, passam agora por uma versão deambulante, enquanto não terminam as obras (a conclusão está para daqui a poucas semanas) na cave onde se realizam as leituras. “Nunca paramos, para não perdermos o ritmo”, conta o ator Rui Spranger, o dinamizador de serviço desde 2002. Nas redes sociais, passa a palavra sobre qual será o próximo local. A última sessão decorreu no Ferro Bar, numa sala com paredes de granito e uma pequena plateia. A chuva impiedosa não afastou os fiéis e, a partir das 22h30, as cadeiras foram sendo ocupadas por pessoas com papéis e livros nas mãos. “Nunca fizemos o culto do poeta. É tão importante quem vem para ler como aquele que está só para ouvir, e a inexistência dessa reverência torna o ambiente mais descontraído”, sublinha Spranger. Nos primeiros minutos é ele quem faz a maioria das leituras, intercaladas pela voz e guitarra de Rui David – o músico lançou recentemente o álbum Contraluz e aproveita para tocar alguns dos temas. Aos poucos, uma e outra pessoa dá voz, algumas vezes aos seus próprios poemas. “Isto é, sobretudo, um espaço de liberdade, nem eu sei o que vai acontecer e, se sei, não o divulgo”, confessa Rui Spranger. As surpresas são muitas, como quando apareceu o músico brasileiro Rodrigo Amarante ou a banda que acompanha Elza Soares. Pelas noites do Pinguim, vários poetas começaram a mostrar a sua poesia, como Valter Hugo Mãe, Filipa Leal, João Habitualmente ou Daniel Maia Pinto-Rodrigues. “Proporcionamos muitas descobertas, mas isto não é um programa de caça-talentos. Podemos ter influenciado alguns percursos, mas o mérito é deles”, destaca Spranger. O ator não tem dúvidas de que Portugal é, efetivamente, um país de poetas, e grande parte das sessões é dedicada aos nossos autores. Tanto se cai no humor de Alberto Pimenta como no neorrealismo de Manuel da Fonseca ou nos clássicos de Pessoa. Certo é que os participantes “têm um grande gosto pela poesia e os poemas que dizem raramente são menores.” No final, a figura de Joaquim Castro Caldas – o poeta rebelde que iniciou as noites de poesia no Pinguim – é sempre recordada, com o poema Ir Indo (na versão musicada por Suzana Ralha) a ser cantado pelos presentes. “A gente aprende / o coração à lareira / que se fica a ir / e reacende / até que um dia / alguém se lembre.”
Microfone aberto
Em Lisboa, na próxima segunda-feira, 18, no restaurante/bar Povo, no Cais do Sodré, tem lugar a sessão número 315 dos Poetas do Povo. “A segunda é um dia ingrato, mas isso torna ainda mais extraordinário o sucesso destas noites”, diz Nuno Miguel Guedes, mestre de cerimónias destas sessões. Apaixonado por música e poesia, o jornalista e argumentista brinca com a situação: “Sou uma espécie de Júlio Isidro.” Os Poetas do Povo ganharam vida no início de 2013, por iniciativa de Alexandre Cortez, músico e sócio do Povo, num registo informal e próximo do público, em que se promove a palavra dita. “É poesia de proximidade, uma coisa quotidiana, e o próprio espaço também tira essa carga mais pesada dos recitais de poesia; nós estamos nos antípodas”, sublinha Nuno Miguel Guedes que também ajuda a programar estes encontros. As leituras são feitas por três ou quatro convidados – atrizes, músicos, poetas, novos ou consagrados – e, durante hora e meia, dizem-se poemas, contos ou textos de outros géneros literários, escolhidos pelos próprios que têm só de respeitar o tema de cada sessão. “Estas podem ser dedicadas a uma ideia, à cultura pop, a clássicos, a um poeta… Felizmente, há sempre novos pretextos”, diz o jornalista. A assistência faz-se de portugueses e de estrangeiros, porque a rua é cada vez mais turística, mas há os habitués. Os intervenientes nada sabem sobre o que cada um vai apresentar, e há sempre um músico que acompanha de improviso as leituras em palco. “A mensagem ganha força por meio da música, as pessoas sentem-se mais envolvidas, de orelhas mais arrebitadas”, garante Nuno Miguel Guedes. Quase todas as sessões encerram com uns minutos de microfone aberto a qualquer um, desde que se dê o seu nome durante a sessão. “Acontece as pessoas virem, sem nunca terem pensado em participar, e nós não as impedimos de subir ao palco.”
Um clube para os poetas vivos
Em Alfama, no Bela Vinhos e Petiscos, também há poesia, mas não há microfone aberto. André Gago, ator e responsável pelas Primas Terças, não o utiliza nas suas leituras, em que as palavras se entremeiam com comida e bebida. As sessões acontecem na primeira terça-feira do mês, e a de novembro foi especial, assinalando-se os seis anos do projeto. “Não consegui enquadrar todos os textos; decidi juntá-los nesta sessão atípica e chamar-lhe Poemas Voláteis”, conta. A noite começou com La Solitude, de Léo Ferré, a que se seguiu Álvaro de Campos, mas a heterogenia dos textos permitiu viajar pelas palavras de Gertrude Stein, Arseni Takorvski ou por poemas como Mocinhas Gráceis, de Natália Correia. Desde 2007 que André Gago faz espetáculos de poesia acompanhados por música, tendo tido o privilégio de ser um dos primeiros a declamar nos Poetas do Povo, antes de rumar a Alfama, a convite de Bela, a proprietária desta tasca de petiscos na Rua dos Remédios. Pelas dez e meia, com toda a gente sentada à mesa, apagam-se as luzes, ficando apenas acesso um candeeiro, debaixo do qual o ator dá voz aos poemas, conferindo-lhe uma expressão teatral. O músico Tiago Inuit acompanha com os acordes de baixo a soarem ligeiramente a Dead Combo. “Isto hoje está bom, muito bom”, ouve-se na sala.
Em Lisboa, a poesia diz-se em lugares muito diferentes. Desde 2015 que o Teatro Nacional D. Maria II, no Rossio, é a casa do Clube dos Poetas Vivos. A coordenação é de Teresa Coutinho que há quatro anos foi convidada por Tiago Rodrigues, diretor do teatro, a desenvolver um projeto à volta da poesia, em parceria com a Casa Fernando Pessoa. Numa terça-feira por mês, convida um poeta a juntar-se para uma conversa no átrio do D. Maria, a que se seguem leituras feitas pelos atores do teatro nacional. No Clube dos Poetas Vivos divulga-se a poesia, mas durante as conversas também se descobrem universos poéticos, influências e histórias. “Tocam-se assuntos muito para lá da poesia”, diz a programadora. No final, há espaço para intervir, colocar questões e até conhecer pessoalmente o autor. Teresa Coutinho conta que é habitual o átrio encher-se de gente muito jovem. Prova de que a declamação e a poesia estão vivas, e recomendam-se.