Chegámos ao cruzamento entre a Rua da Alfândega e a Rua dos Arameiros a meio da manhã. Com um dia soalheiro e a torre da Sé de Lisboa à espreita, entre os prédios da Rua dos Bacalhoeiros, somos surpreendidos pelo vaivém de pessoas. São maioritariamente turistas, uns de mapa na mão e com mochila às costas; outros, de manga curta, aproveitam os raios de sol de uma primavera tímida, nas esplanadas renovadas dos cafés e restaurantes desta zona ribeirinha da cidade que se apresenta de cara lavada, depois das obras de requalificação levadas a cabo no Campo das Cebolas e nas áreas envolventes.
Avançamos pela Rua dos Arameiros, agora pedonal, até ao número 15. Ali, antes de dobrar a esquina com a Rua dos Bacalhoeiros, repara-se no prédio revestido a azulejo e no toldo da novíssima Cantina Zé Avillez, o 14º restaurante do chefe distinguido com duas estrelas Michelin. Metade da sala interior da Cantina já foi o restaurante O Fernando, propriedade da família Arez, que se mudou há três anos para o prédio ao lado, para prosseguir com o negócio que aqui têm há 40 anos. Ainda que haja um novo vizinho, os clientes continuam a fazer fila à porta de O Fernando, a funcionar no número 7, e onde todos os dias se confeciona mais de dezena e meia de pratos de comida tradicional portuguesa. “O meu pai ainda hoje se abastece no Mercado da Ribeira; tem mantido a tradição”, diz Marco que, com o irmão Joel e o pai Fernando, assegura o serviço tanto no interior como na esplanada.
Aberta há um mês, a Cantina Zé Avillez é já bem conhecida por estes lados, e não só pelos moradores, em pouco número neste local da cidade. O chefe justifica a escolha desta zona encaixada entre a Baixa lisboeta, a castiça Alfama e o rio Tejo: “É uma localização privilegiada que está a ser bem recuperada. Gosto especialmente dela por ser um dos sítios onde a cidade toca no rio.” Mas nem sempre foi assim. “Há uns anos, o Campo das Cebolas era um lugar feio e sujo, mas agora está mais luminoso e começa a ser um ponto de encontro”, afirma José Avillez.
No dia da visita da VISÃO Se7e, quase todas as mesas estavam ocupadas. O ambiente é descontraído, e a ementa baseada no receituário português: sopa de feijão com couve-lombarda, escabeche de pato ou pataniscas com arroz de feijão-preto e maionese de alho.
Uma mão-cheia de novidades
Em breve hão de chegar novos inquilinos ao prédio onde José Avillez se instalou. Já confirmada está também a abertura do restaurante do chefe João Sá. “Não posso revelar muito, mas espero abrir daqui a dois ou três meses. O foco será a cozinha sazonal, do mercado para a mesa”, conta. Também a L’Éclair terá aqui uma nova loja em maio. “Como estamos vocacionados para os portugueses, nunca pensámos abrir uma loja nesta zona, mais turística. Foi a requalificação que nos trouxe”, explica Matthieu Croiger, um dos proprietários. Com 15 lugares no interior, o local terá uma janela-balcão virada para a rua, numa clara aposta no cliente turista e no take away. Quem também aproveitou a oportunidade foram as irmãs Débora e Bárbara Pinto que, aos cafés Nicolau e Amélia – na Baixa e no bairro de Campo de Ourique, respetivamente –, vão juntar o Basílio. “A filosofia será a mesma: alimentação saudável, pequenos-almoços e brunch a qualquer hora”, diz Débora.
É tempo de continuar o passeio pela Rua dos Bacalhoeiros, agora quase toda ela pedonal, mas não sem antes nos demorarmos na montra da Benamôr. A marca de cosmética portuguesa, nascida em Lisboa há 92 anos, abriu aqui loja própria em novembro do ano passado. “Por enquanto, o turista é o principal cliente; no entanto, são os portugueses que mais se encantam com a loja, porque se identificam com a história e os cremes”, conta Cátia Cardoso, uma das funcionárias.
Como vizinhos, têm a Taberna Moderna, do galego Luis Carballo. “Abrimos em 2012, a zona estava degradada, cheia de lixo e de carros, mas eu acreditava no sítio. Fiquei encantado com estas portas azuis”, confessa o proprietário. As obras “roubaram” alguns lugares na esplanada, nada que atrapalhe o funcionamento do restaurante que, por esta altura, tem uma nova ementa de petiscos para o almoço. No bar Lisbonita, no interior, um dos primeiros especializados em gin, também há novidades: uma lista agora com 115 referências. Na parede está Macaco, de Bordallo II, uma das obras que o artista apresentou na sua primeira exposição a solo, em novembro do ano passado, no seu estúdio-armazém em Xabregas.
TERMINAL-MIRADOURO
O longo banco de pedra em frente ao Memorial a José Saramago pede tempo para nos sentarmos e é um bom posto para observar as mudanças à volta – a começar por esta nova área de estada de onde se admiram as fachadas dos prédios, umas arranjadas, outras ainda por recuperar. A que mais se destaca é a da conhecida Casa dos Bicos, mandada construir, em 1523, por Brás de Albuquerque, e que teve como modelo o Palácio dos Diamantes, em Ferrara, Itália. É, desde 2012, a sede da Fundação José Saramago e, talvez por isso, arriscamos, haja muitos grupos de jovens estrangeiros sentados à porta, à espera de uma visita. Além da exposição permanente relacionada com a vida e obra do escritor, o Núcleo Arqueológico, no piso térreo, revela vestígios de épocas passadas – desde a ocupação romana até ao século XVIII. Atraídos pelo verde, atravessamos a estrada em direção à nova praça da cidade. Primeiro, o pavimento de tons claros, feito de betão e de pedra lioz, depois as zonas relvadas. As jovens árvores ainda não dão sombra, mas, em compensação, há um parque infantil novinho em folha para as crianças brincarem. Quase todos os dias, Nina, Diogo e Lucas, filhos de Ivone Costa, usufruem dele ao fim da tarde. “Antes não havia nada perto de casa para entreter os miúdos”, nota Ivone.
As obras de requalificação, segundo o projeto do arquiteto Carrilho da Graça, ampliaram passeios, criaram novas zonas de estar, retiraram carros onde estes não eram bem-vindos. E incluíram a construção de um parque de estacionamento subterrâneo, com cerca de 200 lugares – a demorar mais tempo do que o previsto, devido aos vestígios arqueológicos encontrados, alguns dos quais ali estarão expostos e visíveis assim que o parque for aberto ao público.
O pó ainda não assentou na totalidade, mas a vida do bairro continua. O Solar dos Bicos, na Rua dos Bacalhoeiros, a celebrar 33 anos no dia 19 deste mês, é um dos restaurantes clássicos que se encontram por aqui. Serve polvo à lagareiro e bacalhau à minhota, uma ementa baseada na cozinha tradicional portuguesa que Karina Ramirez e Avelino Correia não quiseram mudar quando, há três anos, tomaram conta do negócio. “Com as obras, foi difícil, mas em breve vamos ter novidades. O primeiro andar vai abrir como bar e servir petiscos e cerveja artesanal”, assegura Karina.
Umas portas ao lado está o Cais na Preguiça, “num prédio lindo”, dizem as proprietárias e amigas de longa data, Alcina Ló e Ana Sousa. Inaugurado em janeiro do ano passado, aqui partilham-se petiscos confecionados com produtos frescos – caldo-verde crocante, cavala alimada, pataniscas de bacalhau com compota de pimento – e vinhos provenientes de pequenos produtores. Quando elas abriram, as obras já decorriam e os buracos também lhes apareceram à porta, porém resistiram. “Foi sempre uma zona turística, mas era completamente diferente; agora dá gosto vir para aqui. No nosso caso, a aposta é nos clientes portugueses, mas acho que os estrangeiros só têm a ganhar com isso”, diz Alcina. A partir de uma ideia dos funcionários do restaurante nascerá em breve a fanzine Francisca, para dar conta da vida do bairro. Antes de sairmos, Alcina indica-nos o Camones Lounge & Luggage, no primeiro andar do mesmo prédio. Está de portas abertas desde agosto de 2016, e o nome resume o propósito da proprietária Cláudia Loureiro: um sítio onde os turistas, estrangeiros ou portugueses, podem guardar a bagagem entre o check-in ou o check-out de um Airbnb qualquer. Neste negócio que mais parece uma casa há ainda salas onde se pode descansar e até trabalhar. “Estou confiante nas mudanças feitas, acho que depois disto vamos conseguir ter retorno”, diz Cláudia.
O verdadeiro Campo das Cebolas
Dá gosto calcorrear estas ruas de passeios amplos e sem carros a empatar. Por isso, depressa se chega ao verdadeiro Campo das Cebolas (a placa toponímica está lá para atestá–lo). Ficou desafogado e luminoso, uma mudança radical apreciada por quem aqui tem os seus negócios. “Era assustador estar dentro da loja durante as obras, eu cheguei a chorar, e houve quem não resistisse”, conta Vera Gama, proprietária da Amar Lisboa, no número 44, desde junho de 2012. Hoje, vê o futuro com outros olhos e muita cor, como as peças que vende – do mais moderno, como t-shirts, figuras do Santo António ou sacos, produzidos pela própria loja, ao artesanato mais tradicional. “Finalmente temos o espaço liberto, e está lindo. Não se pode dizer só mal”, sublinha.
Também os vizinhos Lisbon Art Gallery, no número 41, onde Abel Grade expõe e vende as suas obras, e o Atelier Gelati, de Elsa Saraiva, no número 40, resistiram de portas abertas. “Em 2016, sentimos que o nosso gelado artesanal precisava de chegar a outro público que não o da primeira loja no Parque das Nações, e então apostámos nesta zona porque nos parecia ter futuro. Há um grande potencial turístico aqui”, diz Elsa. Entrar na Atelier Gelati é sentir de imediato a tentação de provar não um mas vários sabores dos gelados e sorvetes que aqui produzem artesanalmente com ingredientes frescos e de qualidade. “Os turistas adoram o sabor a arroz-doce, porque estão sedentos de tudo o que é português”, conta. Abel, Vera e Elsa têm as suas lojas num edifício revestido a azulejo, mas, mais à frente, a Lx Rent, onde se alugam motas e motociclos, e o café Noca’s, gerido por Paulo Santos há 19 anos, estão em prédios ainda por recuperar. “Não há muitos moradores, e as empresas ou fecharam ou acabaram por sair daqui”, diz o proprietário do café Noca’s. Nada que empate o negócio. Do outro lado da Avenida Infante D. Henrique, abriu para o mundo uma nova porta de entrada em Lisboa. Falamos do novo Terminal de Cruzeiros, um projeto também da autoria do arquiteto Carrilho da Graça. Para lá chegar, percorremos a Rua Cais de Santarém, admiramos o antigo palácio Coculim, transformado num hotel de cinco estrelas, o Eurostars Museum – que conserva, no interior, vários núcleos arqueológicos –, e o Chafariz D’El Rey, um dos mais antigos da cidade, a precisar de obras de manutenção, fica a nota. Depois é preciso atravessar ainda o Largo Terreiro do Trigo e a grande avenida que corre paralela ao rio. Virado para o Tejo, lá está o terminal, anguloso e depurado, construído em betão branco com cortiça.
Porque não é possível subirmos ao miradouro, na cobertura do edifício, os olhos fixam-se na passarela de 600 metros de comprimento, a sete metros do chão, por onde circulam os turistas que viajam de cruzeiro. Em breve, a cafetaria abrirá portas e – terminadas as intervenções junto ao rio, as quais incluem a criação de espaços verdes e um passeio a ligar a Praça do Comércio à Estação de Santa Apolónia – poderemos usufruir desta zona ribeirinha. Sempre com o Tejo de um lado e as colinas de Lisboa do outro. * com Sandra Pinto
O projeto do arquiteto Carrilho da Graça ampliou passeios, criou novas zonas de estar, retirou carros onde estes não eram bem-vindos. Em breve abrirá o novo parque de estacionamento subterrâneo, com cerca de 200 lugares
Onde Comer
O Fernando
R. dos Arameiros, 7, Lisboa > T. 21 887 0077 > seg-sáb 8h-24h
Cantina Zé Avillez
R. dos Arameiros, 15, Lisboa > T. 21 580 7625 > seg-dom 12h-24h
Taberna Moderna
R. dos Bacalhoeiros, 18, Lisboa > T. 21 886 5039 > seg-sáb 12h-2h
Solar dos Bicos
R. dos Bacalhoeiros 8A-B, Lisboa > T. 21 886 9447 > seg-dom 10h-23h
Davvero
Abriu portas no verão do ano passado e é uma das lojas mais pequenas da marca. Tem cerca de 20 sabores de gelado, granizados, waffles e crepes. R. Cais de Santarém, 36, Lisboa > T. 91 228 7793 > seg-qui 10h30-22h30, sex-sáb 12h-24h, dom 13h-20h
Cais na Preguiça
R. dos Bacalhoeiros, 4C, Lisboa > T. 21 134 8408 > ter-sáb 10h-23h, dom 10h-17h
Atelier Gelati
Campo das Cebolas, 40, Lisboa > T. 21 588 1347 > seg-dom 12h-19h
Noca’s Café
Campo das Cebolas, 18, Lisboa > T. 21 887 5132 > seg-sáb 7h-18h
O que ver
Casa dos Bicos – Fundação José Saramago
No rés do chão do edifício que serve de sede à Fundação José Saramago, funciona o Núcleo Arqueológico da Casa dos Bicos, um dos polos do Museu de Lisboa, com entrada gratuita. Nos pisos superiores, visita-se a exposição permanente A Semente e os Frutos, dedicada à vida e obra do escritor, a livraria e a loja.
R. dos Bacalhoeiros, 10, Lisboa > T. 21 880 2040 > seg-sáb 10h-18h (última entrada 17h30) > €3
Eurostars Museum
Uma estela gravada com escrita fenícia, um mosaico romano com a representação de Vénus, uma antiga rua romana, um tanque fontanário e um poço são alguns dos achados que se podem visitar no novo hotel Eurostars Museum. Em breve haverá visitas guiadas aos vários núcleos arqueológicos.
R. Cais de Santarém, 40, Lisboa > T. 21 116 6100
Terminal de Cruzeiros de Lisboa
Av. Infante D. Henrique, Lisboa > T. 21 049 7940
Lisbon Art Gallery
Campo das Cebolas, 41, Lisboa > T. 96 348 6362
Comprar
Benamôr
R. dos Bacalhoeiros, 20A, Lisboa > T. 21 800 3037 > seg-sáb 10h-20h
Amar Lisboa
Campo das Cebolas, 44, Lisboa > T. 21 136 7403 > seg-qua 10h-19h, qui-dom 10h-21h
Loja 28
Liliana Pinto, 60 anos, é a proprietária desta loja de artesanato, a funcionar há três anos nesta morada. R. Cais de Santarém, 28, Lisboa > T. 91 235 3427 > seg-dom 10h-19h30
Lx Rent
Campo das Cebolas, 21, Lisboa > T. 91 724 9806 > seg-dom 9h30-18h30
Camones Lounge & Luggage
R. dos Bacalhoeiros, 4, 1º, Lisboa > T. 93 329 7441 > seg-sex 9h-19h, sáb-dom 10h-18h