1. O Perfume das Flores à Noite, de Leïla Slimani

Escrever é dizer “não” ao mundo, sublinha a escritora marroquina francófona, cujos romances desbravam histórias e domínios de corpos femininos. Leïla diz “sim” a um convite “snob”: passar uma noite na Punta Della Dogana, em Veneza, reinventada como museu contemporâneo. Não é o acesso VIP às obras de arte que a seduz, mas sim o sonho literário da “clausura, com um quarto só seu, onde seríamos a um tempo os presos e os carcereiros”. É com o espírito de “uma jovem rapariga a entrar no convento” que Leïla aí se fecha. E questiona-se: “Poderá a beleza surgir num texto que não vem de nós?” Há, aqui, beleza e aromas de dama-da-noite, mas esta não resulta da arte arrumada nas salas. Aliás, Slimani confessa perplexidade face à trivialidade de certas obras e sente-se numa “festa onde não tivesse nada a fazer” e onde ninguém a conhecesse. Este livro é um sonho de uma noite de inverno, com a autora, sozinha e descalça, a refletir sobre a escrita (com muitas citações, de Duras a Woolf), sobre a sua infância vivida em Rabat, sobre colonialismo e dupla identidade (ela é “uma árabe como eles gostam”, que cita Zola, come carne de porco, bebe álcool, apega-se a ideais laicos). Tal como Veneza, Leïla “vive num entremundo”. Ao clarear o dia, despertará: “Como pode a feminista, a militante, a escritora que aspiro a ser fantasiar com quatro paredes e uma porta bem trancada? Deveria querer quebrar as jaulas, soprar contra as muralhas até elas estremecerem e caírem.” E concluirá: “Estar em paz é uma fantasia egoísta.” Alfaguara, 144 págs., €16,45
2. Trilogia das Constelações, de Mário Cláudio

Há reencontros literários que se evitam, instigados pela suspeita da deceção no regresso aos lugares onde se foi feliz. Esse risco diminui face aos virtuosos que têm sempre um parágrafo sabiamente esculpido a propor metáforas sobre a escrita: “Poucos teriam atentado naquele infante espigadote, separando-se dos pais idosos, dos quais era o único rebento, não oferecendo mostras de qualquer paixão que lhe entenebrecesse a catadura, mas antes ardendo num desassossego que não determinaria ninguém se era a chama do alimento da revolta, se o lampejo da vontade da aventura.” Esta descrição serve às sete crianças judias desterradas para São Tomé por causa da “desobediência” dos pais às leis cristãs, em Oríon (2003), um dos três romances reunidos sob esta belíssima capa, com Ursamaior (2000), viagem à violência concentrada numa prisão, e Gémeos (2004), amor lolitiano entre um velho pintor e a filha da sua amante. D. Quixote, 424 págs., €22,20
3. O Africano da Gronelândia, de Tété-Michael Kpomassie

Um adolescente do Togo, filho de uma família tradicional composta por pai, oito esposas, vários meios–irmãos e curandeiros vários, crentes numa intrincada cosmogonia animista, transforma–se, por causa de uma cobra e de um livro, encontrado por acaso, com pistas que o fazem sonhar, no primeiro escritor-viajante do seu continente. Um “esquimó africano” atraído para a brancura da Gronelândia, onde, durante 11 anos, testemunhará uma sociedade diferente, e experienciará (ser) o Outro. Sublinha bem Carlos Vaz Marques, no prefácio deste livro minucioso e maravilhoso, que “é inevitável confrontarmo-nos com um travo de melancolia ao lermos agora este relato, num mundo onde todas as semanas recebemos notícias sobre a tragédia dos refugiados às portas da Europa”. E conclui: “A viagem de Tété-Michael, nos anos 60 do século passado, seria hoje impossível.” Tinta da China, 360 págs., €21,95
4. Um Certo Lucas, de Julio Cortázar

Inéditos em Portugal, estes textos curtos do escritor argentino amplificam a experimentação formal e a fantasia literária que reconhecemos em livros como o romance Rayuela/O Jogo do Mundo. Elogiando os “escritores polígrafos”, isto é, aqueles que “lançam o isco em todas as direções”, como é o seu caso, Cortázar testa-se e diverte-se – e testa-nos, desorientando–nos à força de um humor (quase sempre) benigno. Um Certo Lucas agrega duas partes protagonizadas obsessiva e metodicamente pelo dito Lucas, e uma terceira que reúne ficções surreais onde cabem gatos-telefones e cineastas caçadores de crepúsculos; restaurantes de luxo que fazem serviço público, oferecendo aos comensais uma experiência sociológica e o “espectáculo de um povo trabalhador” no metro; ou, ainda, nações que usam injeções de peixinhos dourados para aumentar a felicidade dos seus habitantes… Cavalo de Ferro, 176 págs., €15,49
5. Divisão da Alegria, de Raquel Nobre Guerra

A poeta apresenta o seu livro “mais extenso e mais expansivo” arrumado em quatro partes (Canções da Manhã – Da Mansarda ao Mundo, Canções da Tarde – Biblioteca Nacional, Canções da Noite – O Açúcar da Metempsicose e Oito Poemas para o Pai). Longe de configurarem uma exaltação de bons sentimentos, os poemas revelam, nas palavras de Pedro Mexia, a tentativa de entender, “com um admirável ânimo, em quantas partes diferentes a alegria se divide”. Assistimos “à digestão do universo dentro da sua própria barriga”, à luxúria urbana de uma poesia onde cabem ossos, Coca–Cola e Nina Simone. Mas é a sua relação “carnal” com o Alentejo que mais brilha: “Às vezes olho para um limoeiro / numa das partes recuadas da casa e espanta-me / a felicidade com que respondo também sou tua / e o limoeiro com seu corpo brilhante de lantejoulas/ podia perfeitamente ser o marmeleiro de Victor Erice / ou um recado teu (…).” Tinta da China, 152 págs., €14,90
6. Mãe Para Jantar, de Shalom Auslander

A inaugurar a coleção Romances da editora Guerra & Paz, chega uma sátira desconcertante e falsamente amoral sobre laços de família, heranças étnicas e identitárias, limites do humor, minorias ressentidas com falta de representatividade, direitos civis, hipocrisias sociais, história americana, Holocausto, ecos de Woody Allen e das servas de Margareth Atwood, de séries televisivas e, respire-se fundo…, amor filial e fraternal. É um caldo concentrado do nosso zeitgeist, com uma reviravolta: o protagonista é Sétimo Seltzer, um canibal judeu americano que, juntamente com os irmãos (originalmente eram 12, pois a mãe queria erguer a nação canibal descriminada pela lei, mas houve dissidentes…), é chamado ao leito de morte da matriarca. No menu, há despedidas, uma ceia final para a qual ela se preparou à custa de hambúrgueres com todos os acompanhamentos, e um ultimato: se não a comerem, não recebem herança… Guerra & Paz, 214 págs., €16
7. O Delírio Nazi, de Heather Pringle

Somar-se-ão às centenas os tomos dedicados a um dos períodos mais negros da História europeia, à tenebrosa “solução final” e às atrocidades alimentadas por um lunático disposto a “desaparecer no meio de um mar de chamas” levando atrás Alemanha e Europa. Esta obra duma jornalista canadiana consegue trazer novas perspetivas ao tema, explorando as mirabolantes e manipuladoras tentativas de obter caução intelectual, histórica e científica da superioridade ariana, então fomentadas pelo líder da Gestapo. Heinrich Himmler arregimentou mercenários, fanáticos, místicos, crédulos e incautos… mas também mais de uma centena de cientistas respeitados que submeteram a Ciência aos desígnios políticos. Uma multidão missionária, descrita com mão segura e evocativa, que nos transporta para as montanhas dos Himalaias, as ruas do Iraque ou a província da Crimeia.
Himmler – que, lê-se, detestava ser ridicularizado, mas acreditou que os Aliados “fariam vista grossa aos seus crimes terríveis” e o deixariam substituir–se a Hitler e reinventar-se como “novo líder anticomunista da Alemanha” – fundou o Ahnenerbe (nome que significa “algo herdado dos antepassados”), instituto de investigação destinado à deificação da raça alemã e à produção de provas dos supostos feitos heroicos praticados por essa gente branca e loira. Na prática, disseca-se aqui uma gigantesca operação de fake news, revisionismo, e legitimação de futuros crimes de guerra, cuja leitura, face ao atual contexto, ganha outra ressonância. Casa das Letras, 592 págs., €21,90