1. A Promessa, de Damon Galgut

Este romance admirável, que chegou medalhado com o Booker Prize 2021, serpenteia por uma árvore genealógica envenenada, pontuada pela morte: cada capítulo é dedicado a um Swart que morre, descendente de uma família branca a perder privilégios na África do Sul em transição do apartheid para a democracia. A cada década, o autor sul-africano aproxima uma lupa de entomologista sobre o núcleo familiar, radiografando subtilmente as mudanças sociais vividas desde os tempos do primeiro-ministro P.W. Botha, aos de Thabo Mbeki, o segundo Presidente pós-apartheid, ou os de Jacob Zuma. No leito de morte, Rachel pede ao marido afrikaner, Manie, que recompense a devoção da criada negra Salomé com a propriedade da casa onde esta dorme. Uma promessa testemunhada pela filha mais nova do casal, Amor: “Não me viram, eu era como uma mulher negra para eles.” “Ja, podes ficar descansada”, mente o pai. A “Santa Amor” dedica-se, depois, à expiação das culpas trabalhando com doentes com VIH – e testemunhará as partidas: do pai, que parecia “granular, como se toda a areia estivesse prestes a escoar-se dele”; da irmã, Astrid, que “perdeu o talento para dizer a verdade” e que, na tomada de posse de Mbeki, se entusiasma é com o burburinho de “fatiotas chiques e chapéus” nos Union Buildings; do irmão, Anton, que tem um crime racial na consciência e “aprecia quando as pessoas têm a decência de sofrer fora do palco, longe da vista”… Relógio D’Água, 288 págs., €18,50
2. Tomás Nevinson, de Javier Marías

Agarrar um fio narrativo deste autor espanhol é fazer um pacto para ir até ao fim, embalados pelo seu discurso comedido, hipnótico, irredutivelmente habitado pela literatura e por um existencialismo filosófico – mesmo quando o seu protagonista veste o sobretudo de um espião secreto. Evocando o anterior livro Berta Isla, neste romance traduzido pelo poeta Vasco Gato seguimos agora a história vivida pelo marido da professora Berta. O agente dos serviços secretos britânicos Tomás Nevinson é, em janeiro de 1997, recrutado para uma nova missão, após uns anos de pousio: a de encontrar uma terrorista ligada ao IRA e à ETA em Espanha. Mas Nevinson não é George Smiley nem James Bond: este seu regresso à ação é, sobretudo, um questionamento sobre se os fins justificam os meios. Em última instância, uma reflexão sobre a responsabilidade dos nossos atos no desfecho do mundo. Alfaguara, 656 págs., €24,90
3. Raret – A Guerra Fria combatida a partir da charneca ribatejana, de Vitor Madail Herdeiro

Inexplicavelmente guardado na sombra, este episódio da nossa História regressa, agora, em duas versões: a ficcionada, na série de televisão Glória (da Netflix), e a investigativa, neste livro assinado por um historiador. Há 70 anos, o embaixador dos EUA convenceu Salazar, o ditador que alardeava neutralidade, a permitir a construção em território português de um centro de retransmissão Radio Free Europe (RFE), organização patrocinada pelo National Committee Free Europe (NCFE) e financiada pela CIA. A RARET foi mais uma peça na complexa engrenagem da Guerra Fria, com os norte-americanos a lançarem propaganda anticomunista a partir da Europa para lá da Cortina de Ferro. Uma leitura fascinante, centrada numa comunidade de 400 pessoas, atores durante 45 anos num conflito distante. Edições 70, 152 págs., €14,90
4. Como Ver Coisas Invisíveis, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso

Folhear este livro é fazer um reboot às mentes entorpecidas dos proverbiais 8 aos 88 anos. As autoras defendem que a imaginação e a criatividade (que são coisas diferentes, sublinham, “um planeta gasoso e um planeta sólido”) serão necessárias para enfrentar os desafios ecológicos e políticos contemporâneos. E o leitor vai concordar. Aqui, fala-se de coisas que “não existiam em lado nenhum” e que alguém viu pela primeira vez na imaginação, “numa curiosidade mais esfomeada do que um tigre que não come há muitos dias”. Fazer a pergunta certa, pesquisar, escolher bem, tratar dados, aceitar desafios, pensar por si, ou lutar pelo mundo, são conceitos para aqui chamados, com a ajuda de bons exemplos (Lourdes Castro, Bruno Munari, Julio Cortázar…) e de ilustrações com forte impacto gráfico. Um volume maravilhoso. Planeta Tangerina, 256 págs. €24,60
5. Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso

Uma mãe burguesa que se sente “uma turista” na sua própria casa, uma babá com óvulos secos que não quer perder a criança amada. Maju rapta Cora, filha de Fernanda, assim desatando este relato, alternadamente narrado pelas vozes das duas mulheres, que têm espessura, mundividência, igual protagonismo. “Estou raptando uma criança. Tento afastar esse pensamento, mas ele persiste enquanto descemos pelo elevador, cumprimentamos o Chico, saímos pelo portão. São coisas que fazemos todos os dias (…).” É a partir desta rutura de uma normalidade aparente que Suíte Tóquio parte para ecoar as clivagens sociais brasileiras, evidentes nesse “exército branco”: o das mulheres invisíveis, que deixam pobreza e família para cuidar da prole alheia. Mas o romance explora igualmente os equívocos da feminilidade, da sexualidade, da maternidade. Um retrato poderoso. Tinta da China, 224 págs., €17,90
6. Música Negra, de LeRoi Jones (Amiri Baraka)

A bagagem musical e a escrita combativa e provocadora deste volume editado em 1967, extravasando para a sociologia, filosofia e política, ecoam nos atuais acertos de contas em torno do racismo sistémico e do pós-colonialismo. Música Negra é muito mais do que uma bíblia de bolso dedicada ao jazz moderno e de vanguarda: por entre ensaios, críticas, apontamentos, entrevistas, perfis, opiniões (discutíveis) e análises detalhadas de grandes nomes do jazz (Billie Holiday, John Coltrane, Thelonious Monk, Miles Davis, Ornette Coleman, Sun Ra, Don Cherry…), estão textos como O Jazz e a Crítica Branca, de 1963, sobre as discrepâncias raciais entre artistas e críticos. Kalaf Epalanga assina um emotivo prefácio sobre este autor controverso que, diz, poderia ter sido “o próximo James Baldwin”, mas, traumatizado pela morte de Malcolm X, abraçou antes uma militância cultural e cívica no Harlem. Orfeu Negro, 296 págs., €17
7. Deuses e Demónios da Medicina, de Fernando Namora

Com os boletins médicos hoje integrados no nosso quotidiano, os movimentos antivacinas a fazerem manchetes, e a perspetiva de novos vírus a atacarem num futuro próximo, estas “biografias romanceadas” de grandes figuras da medicina ocidental, incluindo os seus erros e triunfos, ganham novas camadas de leitura. Fernando Namora (1919-1989), o (quase) esquecido autor do romance Retalhos da Vida de um Médico, debruça-se sobre 22 figuras exemplares, que incluem Hipócrates (grande clínico grego da Antiguidade, cujo nome batiza o juramento ético destes profissionais), Ambroise Paré (cirurgião dos anos1500 que idealizou técnicas de implantes dentários e membros artificiais), Rudolf Virchow (pai da patologia moderna), Freud (o guru da psicanálise), Alexander Flemming (descobridor da penicilina) ou o médico e pedagogo português Ribeiro Sanches. Histórias de vida descritas com concisão e atmosfera, que demonstram ainda como a verdade científica é feita de tropeços e recuos. No prefácio, Manuel Sobrinho Simões partilha uma reflexão sobre a moderna “medicina de precisão”, que, afiança, “afasta-nos do ser humano enquanto sujeito da vida relacional e da saúde, por mais informação e tecnologia que estejam à nossa disposição”. O investigador sublinha a “importância da dimensão da história das pessoas e dos outros” no cuidar – palavras que ganham ressonância nestes dias de mortes solitárias em hospitais. Caminho, 704 págs., €24,90