A atualidade vista com os olhos da ficção, a imaginação com um pé bem assente na realidade. Foi este o compromisso que Mia Couto assumiu com a VISÃO para a sua crónica mensal. Enquanto cronista, nunca afastar o olhar do que o rodeia. Enquanto escritor, procurar sempre novos pontos de vista e protagonistas. Essa vontade de aliar observação e imaginação, realidade e ficção, comum e incomum, reconhecimento e surpresa sobressai ainda mais na reunião em livro de algumas dessas crónicas, agora revistas e aumentadas.
Há em cada crónica de Mia Couto um encontro de dois mundos, que em Moçambique, como em muitos outros países, estão constantemente em confronto. O mundo da cidade e o do campo, da modernidade e da tradição, da paz e da guerra, do português e das línguas locais. A crónica que dá título ao conjunto, “O Caçador de Elefantes Invisíveis”, é paradigmática. Uma brigada dos serviços de saúde dirige-se às comunidades mais remotas com a missão de divulgar os perigos da Covid-19. Ao deparar com um caçador, não perdem tempo e desbobinam a cassete. E, ao longo da conversa, parecem, de facto, estar de acordo em tudo, como se o assunto fosse simples e já conhecido. Só que cada um está metido na sua realidade e circunstância, sem que ninguém disso se aperceba. Os enviados da capital referem-se a um vírus que não se vê e que, por isso mesmo, é ainda mais perigoso. O caçador não podia estar mais de acordo, até porque muitos bichos que caça afiguram-se efetivamente entidades sem corpo, que aparecem e desaparecem da sua mira, mesmo os de maior porte, como os elefantes. Para esta situação, como em tantas outras nestas crónicas, um tradutor precisa-se. E Mia Couto não falta à chamada, com a sua prosa delicada, a atenção aos pormenores, a capacidade de jogar com os equívocos e o conhecimento do país onde nasceu em 1955 e que continua a percorrer como biólogo de norte a sul.
Acompanhando a atualidade de Moçambique, um país marcado pelos conflitos armados em Cabo Delgado e desastres naturais, o cronista também nos fala dos pequenos atos de resistência e das cumplicidades que nascem nas situações de maior aperto. Sobre o passado colonial, imagina um colóquio entre as estátuas de Camões e Vasco da Gama na ilha de Moçambique, para nos mostrar como, no espaço público, ainda faltam símbolos que consigam representar todos – como estas crónicas fazem.