Este é um romance que caminha sobre um chão aparentemente minado: Tatiana Salem Levy escreveu uma ficção sobre uma experiência verdadeira, impensável de imaginar viver-se na própria pele, que mexe com fantasmas ancestrais, violência de género, trauma individual. Mas esta é a vivência de outra pessoa: em 2014, uma amiga próxima da escritora foi violada, “es-tu-pra-da” como se martela na página, daí resultando terríveis consequências físicas e emocionais. A escritora foi livre no que escreveu, assim o revelou. E a equidistância literária é um fio de acrobata que Salem Levy percorre segura, sem rede e sem vertigem, mostrando os capazes músculos narrativos e usando gume cirúrgico na linguagem e nas descrições.
Não há histrionismos, nem efeitos dramáticos que desviem a atenção do retrato visceral de uma guerra íntima, a do “corpo saudável que subia a Vista Chinesa de legging e camisetas, que fazia seis quilómetros em quarenta minutos”, agora tão magoado. E que se questiona: “(…) como eu iria trabalhar, comer, tomar banho, era óbvio que nunca mais ia conseguir dormir, nem beijar o Michel, nem transar com o Michel, e os filhos que eu queria tanto, como eu ia fazer, eu estava viva, mas ainda não sabia se a vida seria possível.” Segue-se a via crucis da identificação do atacante, a consciência de que as mulheres são (ainda) presa para predadores, o luto, as decisões difíceis, e uma afirmação de vida: a revelação do seu nome real nas últimas linhas.