“Num dia quente de 1946, sentei-me num cabeço de amarração, no Molo Audace, perto da Piazza Unitá, para escrever um texto piegas. Os ianques, os brits e os jugs (como nos chamávamos uns aos outros naquele tempo) ainda disputavam a cidade, e Trieste não pertencia a nenhum país em concreto, não tinha lealdade definida nem ideologia certa.” Foi o princípio de uma singular devoção a Trieste, lugar sem heróis nem receitas singulares, cidade da Mitteleuropa, porto que conheceu esplendores no tempo dos Habsburgos, zona de passagem (em 1817, quando o fabricante de pianos Thomas Broadwood quis oferecer um instrumento a Beethoven, enviou-o por mar para Trieste, cujos agentes de navegação o despacharam de carroça até Viena).
Onde, lê-se, os gatos se aproximam das trattorias como clientes habituais, e os “picuinhas” arreliam-se: “A loja onde queríamos fazer compras está provavelmente fechada para férias, o museu encerrou temporariamente as portas para remodelação, acabámos de perder o autocarro, já que o horário foi alterado há pouco tempo (…).”
“Mas, para quem gosta de vaguear sem rumo, é o lugar certo.” E é isso que Jan Morris (1926-2020) fez muitas vezes, primeiro aí desembarcando como capitão James Morris (antes da mudança de sexo), depois, como escritora-viajante. Trieste é contada com o seu estilo habitual: um relato elegante, bem-humorado e lírico, habitado por petites histoires e por referências literárias, auscultador das ruas (como quando fala do bora, vento terrível da região).
Trieste, que Robert Hichens achou sonolenta, que James Joyce adotou como residência, e que Italo Svevo recordou sob a forma de passeios escritos, tem para Morris outros encantos: é uma “cidade alucinatória”, cheia de melancolia. “Trieste leva-nos a fazer a nós próprios perguntas sombrias. O que vim aqui fazer? Para onde vou?” E assume que este volume é uma descrição de si própria, aos 75 anos: uma “exilada da normalidade”, libertando-se das expectativas e dos críticos, recordando o passado, crendo no carinho, vendo-se ao espelho.