“A nossa relação desapareceu pelo efeito preguiçoso do tempo – e agora isto: dão-nos mais tempo, os dois trancados no mesmo espaço.” Tempo morto vivido em conjunto é tudo o que não se deseja quando se tem as malas à porta. Quando o narrador, um coordenador de intimidade na indústria do cinema, e Mariana, investigadora em Matemática (artifício narrativo que sublinha opostos, emoção e razão, encenação e verdade, pontos cardeais de todas as histórias de amor), decidem separar-se, as autoridades fecham-nos num confinamento trazido pela pandemia – e eles arrastam as ditas malas de volta, como se puxassem cachorros contrariados pelas orelhas. Fecham-se numa “mãe de cimento”. Mariana quer erguer um muro na sala e há “pausas significativas”, deixas mudas, gestos que falham.
“Aprender a olhar o outro como se fosse televisão”, lê-se neste livro que evoca dispositivos teatrais: duas personagens num espaço fechado. Nas entrelinhas, chamados a acompanhar esta “armadilha para ursos”, há política, Trump e o sontaguiano olhar o sofrimento dos outros, pintores como Hopper e Chagall, autores como Pessoa, Sebald, Nietzsche, Hitchcock e uma televisão sempre ligada.
Uma quarentena é uma vigília acompanhada por fantasmas e referências, 40 dias a atravessar o deserto como na Bíblia (“Pela primeira vez, lavo as mãos rigorosamente. Sinto-me um procurador romano na Palestina, obcecado com a lavagem das mãos. Não é uma sensação boa.”). Este tempo condensa igualmente a escrita do terceiro romance de José Gardeazabal, escritor singular cuja ferocidade na prosa sacode sempre as expectativas. Aqui, as suas frases descosem a litania dos sentimentos – deles e nossos. “O vírus está em toda a parte e não se vê, subiu ao patamar exigente de uma religião. Em vez de uma missa, ouvimos políticos a contar os mortos e os recuperados, diariamente.” Às vezes, há milagres.