Pode-se definir este Contra Mim como um livro de memórias. Pode, mas fica a sensação de que não o apresentamos totalmente dessa maneira. Numa nota final, escreve Valter Hugo Mãe: “Todas as vidas, afinal, são imitação de um romance. Imitam um livro.” O volume junta textos, quase sempre breves, que remetem para a infância e adolescência do autor. E este pequeno Valter Hugo (Pibinho, chamava-lhe a avó) é facilmente entendível como uma personagem – tão poética e quase irreal como trágica e atormentada – criada pelo escritor Valter Hugo Mãe.
Há duas partes bem definidas, com um critério geográfico e de idade: a infância vivida em Paços de Ferreira e a adolescência nas Caxinas. Valter nasceu em Angola, em 1971. A viagem que fez à metrópole com os pais, no início de 1974, não teria o regresso previsto. “De certo modo, minha cabeça nasceu a 25 de abril de 1974”, lê-se. “A nossa casa em Luanda ficou petrificada.” Esta é, também, de alguma forma, uma história de Portugal nos olhos revisitados duma criança. Alguém com um entendimento muito particular da realidade – é essa a força destas páginas.
Ao pequeno Valter não explicavam muitas coisas, mas ele unia os pontos a que tinha acesso, à sua maneira. E era uma criança que acreditava em tudo. Deus, crenças e milagres tinham um papel importante na sua mundividência infantil, enquanto, no quintal, se dedicava aos conhecimentos práticos da ínfíma Natureza, entre bichinhos vivos ou mortos. Comovente, e reveladora de tudo o que se seguiu, é a relação desse pequeno e franzino Valter, desde muito cedo, com as palavras. A poesia chegou, na sua vida, antes do próprio conceito de “poesia”, quando juntava palavras num caderno para ver como dessa convivência nasciam novos e poderosos sentidos. “Para mim, as palavras prometiam milagres, nunca pertenciam ao normal. Eram instrumentos de partida. Iniciavam deslocações e mudanças profundas.” De alguma maneira, tudo o que se lê neste Contra Mim vem, diretamente, desses primeiros milagres. Com a vida terrena a intrometer-se pelo meio.