O clássico Lolita, história da obsessão de um professor de meia-idade pela enteada de 12 anos, a quem são dedicadas as famosas linhas inaugurais do romance de Vladimir Nabokov (“luz da minha vida, fogo da minha virilidade”), tem, hoje, leituras muito diferentes – e herdeiros literários que apresentam o lado oposto da moeda. À luz dos atuais movimentos de empoderamento, há uma nova leva de narrativas, as quais revelam, denunciam e reescrevem histórias de vítimas de relações abusivas (caso do autobiográfico Consentimento, da francesa Vanessa Springora, em que esta narra o envolvimento, aos 14 anos, com um célebre autor de 50). É também o caso de Minha Sombria Vanessa, um primeiro romance poderoso, inquietante, que tenta fugir ao maniqueísmo, retrato minucioso das águas profundamente lodosas da relação entre Jacob Strane, professor de Literatura, de 42 anos, e Vanessa Wye, sua aluna de 15 anos. E quase tudo começa quando ele, previsivelmente, lhe oferece Lolita e ela o lê como uma simples história de amor contrariado.

Narrado pela protagonista feminina, o livro salta entre esses episódios de 2001 e 2017, quando Strane é acusado de abuso sexual por outra antiga aluna. Agora, afundada no trabalho sem glória de hôtesse e em vícios inconsequentes, Vanessa, aos 32 anos, não cumpriu o brilhantismo que o antigo professor via nela. “Disse que eu tinha inteligência emocional ao nível do génio e que escrevia como um prodígio, que podia conversar comigo, desabafar comigo”, recorda ela. Eles ainda mantêm o contacto, às vezes têm sexo telefónico; ela ainda crê que viveu um amor verdadeiro, apesar de… À sua volta, há os gérmenes do movimento #MeToo: milhares de partilhas nas redes sociais a advogarem: “ACREDITEM NAS MULHERES”. Mas as sombras do passado parecem uma paisagem em constante movimento para esta anti-heroína que tarda em enfrentar a mitificação feita, em admitir a relação abusiva. Strane a dizer-lhe: “Azar o meu – disse ele –, quando finalmente conheço a minha alma gémea, ela tem 15 anos.” Strane a oferecer-lhe um pijama com padrão de morangos. Strane a fazê-la cúmplice: “Em tudo o que faz, pede autorização. ‘Posso?’, antes de me tirar a camisola de pijama pela cabeça. ‘Não faz mal?’, antes de me tirar a roupa interior da frente, metendo um dedo com tal rapidez que, por instantes, fico aturdida e o meu corpo como morto. Após algum tempo, começa a pedir autorização depois de já ter feito a coisa.” Strane que a faz, já adulta, confessar o seu labirinto emocional aos parceiros de uma noite: “professor, sexo, 15 anos, mas gostei, sinto falta”. Um grande retrato sobre manipulação, culpa, vitimização e ambiguidade.