Por trás do título aparentemente solar deste novo livro de Teolinda Gersão está uma dissecação primorosa das sombras totalitárias – sejam as do pensamento dominante, da arrogância autoral, da ideologia fascista, do preconceito colonialista, da máquina da guerra, da tirania familiar sobre mulheres e filhas e mães, da avaliação (branca) da cor da pele (mestiça, escura, indígena) e até as do primado da razão sobre as emoções. A escritora, mestra com quatro décadas de vida literária, iniciada com o romance O Silêncio (1981), logo premiado com o Prémio PEN, puxa os fios de todas estas teias sem esforço, com subtileza e modulações de tom, adequando o ritmo do discurso à personalidade dos seus protagonistas – cada um tem a sua voz, e esta manifesta-se materialmente no corpo do texto, das frases metódicas e cerebrais à fragmentação aquosa da memória e das emoções.
Tapeçaria em três partes, com fios comunicantes tecidos entre si, O Regresso de Júlia Mann a Paraty constrói-se em torno de três personalidades fascinantes, que ecoam a bagagem de Gersão: Sigmund Freud (1856-1939), o pai da psicanálise; Thomas Mann (1875-1955), Prémio Nobel da Literatura em 1929, autor dos romances Morte em Veneza e A Montanha Mágica; e a fascinante Júlia Mann (1851-1923), mãe de Thomas e do também escritor Heinrich Mann, nascida na exuberante Paraty, no Brasil, e cedo levada a contragosto para a cinzenta Alemanha. Escutamos as suas vozes como se fossem encantadores de serpentes: primeiro Freud, depois Mann, medindo forças e invejas. Já consagrados, um é atraiçoado pela crença numa “nova era em que a razão venceria a irracionalidade” e em que bastaria a cultura para resistir ao pesadelo nazi. “Eu próprio pensara, décadas antes, que a psicanálise tinha todas as respostas e iria mudar o mundo”, confessa Sigmund. O outro tenta justificar a superioridade, a negação da homossexualidade, as escolhas ambíguas. “Sempre verei a Alemanha como o país da cultura, e não da civilização”, atira Thomas. Mas é com Júlia que a literatura se faz, aqui, transporte torrencial. Condenada a negar o mundo tropical e afetuoso de Paraty, “como se devesse envergonhar–se dele”, dominada por pai, marido e filhos, é ela que tem a aguda perceção dos mais fracos, dos preconceitos que provocam descalabros – “o mundo estava doente, era preciso salvá-lo da loucura”, diz. Uma pérola.