Com um rastilho de galardões, a britânica Bernardine Evaristo não quer e não precisa de boa vontade extraliterária por parte dos seus leitores. Rapariga, Mulher, Outra, o seu primeiro romance traduzido em Portugal, é vigoroso e empoderador, com tiradas inteligentes lançadas em tom desempoeirado, arrumando parágrafos como frases poéticas ou secções rítmicas de jazz.
Obra polifónica, mescla as vozes de uma dezena de personagens, cada uma em capítulos próprios, como que chamadas ao palco para monólogos sucessivos. Não será mera preferência narrativa o facto de o livro abrir com Amma, encenadora e dramaturga, lésbica praticante da “devassidão multirracial”, ativista que passou décadas como “uma pária a lançar granadas à ordem estabelecida que a excluía” até ser absorvida pelo sistema – isto é, o National Theatre, quando esta instituição tem a sua primeira diretora artística mulher.
Rapariga, Mulher, Outra (Elsinore, 480 págs., €21,98) venceu vários prémios: livro e autor do ano nos British Book Awards e o prestigiado Man Booker, ex aequo com Os Testamentos, de Margaret Atwood
Ela é a primeira de um ensemble de mulheres negras, cujas décadas de vida aqui se revelam, em luta contra os sistemas: patriarcal, racial, familiar, material… Aqui, todas as black lives contam e se contam – sejam as de Shirley, professora que entendia ter de ser “uma embaixadora de cada pessoa de cor neste mundo”, ou de Yazz, filha de Amma, a navegar em amizades sem preconceitos, ou da empregada doméstica Bummi, mãe da gestora de fundos Dominique, que se atormenta com o distanciamento das raízes e a apropriação (capitalista?) pelos “ingleses ricos” de tudo o que lhe é valioso. Ou ainda Megan-Morgan, com sangue etíope, afro-americano, malawiano e inglês, tantas bagagens identitárias, que escolhe uma identidade não binária. E outras, filhas da invisibilidade representativa, na arte e na rua.
Evaristo apresenta, aqui, um manifesto ideológico e identitário amplo: aborda questões raciais, mas igualmente as lutas feministas, a tirania dos padrões de beleza, as heranças coloniais, as armadilhas do amor e as escolhas de vida, sempre políticas e celebratórias.