1. Apneia, de Tânia Ganho
Com escrita contida e capítulos que surgem como flashes de memórias, como quem vem à superfície em busca de ar, Apneia (Casa das Letras, 692 págs., €21,90) narra a reverberação contínua, à superfície e nas profundezas, causada pela violência doméstica, pelos abusos familiares, pela manipulação, por esse roer contínuo que faz o osso, “que nem era friável, se quebrar”. As palavras da poeta Anne Sexton são, aqui e ali, boias de sinalização: “Medo era a palavra de quatro letras com que eu vivia, trancada dentro de mim como um segredo obsceno.” Cedo é revelado que a trindade familiar de Alessandro, Adriana e o filho Edoardo está contaminada pelo pai, abutre. Tânia Ganho faz um retrato realista, com cenas e ritmo cinematográficos, deste terror íntimo: os primeiros sinais, a separação, a angústia, o calvário dos tribunais, a fuga, a tragédia. S.S.C.
2. Coisas de Loucos, de Catarina Gomes
“Pouco a pouco a família apaga-se. É este o destino de todos nós.” Assim escreve o sobrinho de Ricardo Vinte e Um na carta em que o informa do falecimento de um familiar. Mas, tal como lembra a jornalista Catarina Gomes, “há outros tipos de apagamento” além da morte. Ricardo Vinte e Um foi como que riscado do mundo ao ser internado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa, em 1942. Tinha 46 anos. Ali permaneceu até morrer, mais de quatro décadas depois, aos 87 anos. A partir dos objetos que lá ficaram perdidos, a autora de Coisas de Loucos – O Que Eles Deixaram No Manicómio (Tinta-da-China, 264 pág., €17,90) resgata esta história do esquecimento. Esta e a de outras sete pessoas que viveram encerradas no primeiro hospital psiquiátrico português, inaugurado em 1848 e desativado em 2011 – todas elas nascidas entre o final do século XIX e o início do século XX, numa época em que a psiquiatria pouco mais tinha para oferecer aos doentes além de tratamentos dolorosos e violentos, como a leucotomia ou a clausura ad aeternum. O primeiro psicofármaco da era moderna, a cloropromazina, só surgiria na década de 50 do século passado.
A escrita de Catarina Gomes aproxima-se dos melhores policiais, deixando o leitor em suspenso à medida que a acompanha nas suas descobertas. Será que vamos conseguir conhecer o rosto de Clemente da Costa Santos, internado em 1929, quando tinha apenas 27 anos? V.M.
3. Inferno, de Pedro Eiras
Avançamos pelas páginas deste Inferno (Assírio & Alvim, 120 págs., €14,40) e um tema parece iluminar-se: o da perda, até porque “chega sempre um instante, nas nossas vidas,/em que todos/ nos perdemos”. Se o título evoca o monumento literário de Dante, isso não é um acaso. “Interessa-me mesmo colocar problemas no meu caminho. Dante deu-me as pistas necessárias, sigo nas pisadas do mestre; é muito difícil ir atrás de um gigante, mas há a vantagem de ele nos mostrar o caminho”, disse o autor na apresentação (virtual, pandemia oblige) do livro. Esta é a estreia do professor universitário de literatura Pedro Eiras na poesia, depois de editar ficção, teatro e vários ensaios. Géneros que, para si, não têm fronteiras estanques. “Eu não penso no assunto, quando estou a escrever”, disse. Inferno foi anunciado como o início de um tríptico numa viagem poética, contemporânea, que segue para o Purgatório e, depois, o Paraíso. P.D.A.
4. Ph. 05, de José M. Rodrigues
A irrepreensível coleção Ph., criada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em nome da fotografia contemporânea portuguesa (e coordenada por Cláudio Garrudo, também ele fotógrafo), segue o seu caminho e chega ao quinto volume, dedicado a José M. Rodrigues (depois de Jorge Molder, Paulo Nozolino, Helena Almeida e Fernando Lemos). O percurso deste fotógrafo (Prémio Pessoa em 1999) é marcado pelo Alentejo, Lisboa e Amesterdão, onde viveu muitos anos e construiu o seu percurso profissional. Mas a sua fotografia está longe de um naturalismo associado a esses lugares e é feita, sobretudo, de composições abstratas, experimentalismos, uma dimensão performativa e uma respiração poética. Ph. 05 (INCM, 136 págs., €19) tem textos de introdução de Rui Prata, que escreve: “Duma quietude irrequieta, o seu fazer fotográfico carece de tempo para ver, refletir e construir.” P.D.A.
5. A Balada de Iza, de Magda Szabó
A escritora húngara tem um dom raro para captar, numa frase justa, numa descrição da paisagem, toda a complicadíssima relojoaria afetiva da família, da memória, das cegueiras que rodeiam a intimidade. Neste memorável A Balada de Iza (Cavalo de Ferro, 318 págs., €20,99), disseca a perda e a solidão – a que chega pela viuvez, mas também pelo envelhecimento ou pelas implacáveis circunvalações do amor. A idosa Etelka fica viúva de Vince, magistrado castigado por se recusar a instrumentalizar a Justiça sob o regime estalinista: um casamento vivido num mundo que já não é o de Iza, a filha médica, crente na ordem e no progresso, que leva a mãe para viver na sua casa moderna de Budapeste. Divididos em Terra, Fogo, Água, Ar, os capítulos desfiam os jogos de poder, a anulação do outro face às ditaduras do afeto, a vida inteira sintetizada em meia dúzia de imagens. S.S.C.
6. Coração Rebelde, de Arundhati Roy
Ela escolheu o ativismo em vez dos festivais literários: “O instinto levou-me a pôr de lado Joyce e Nabokov, a adiar a leitura do grande livro de Don DeLillo e a substituí-los por relatórios sobre drenagem e irrigação, por jornais e livros e documentários sobre barragens”, conta Arundhati Roy, contemplando as aldeias do vale do rio Narmada, em 1999. Entre os romances O Deus das Pequenas Coisas (1997), primeiro Booker Prize para um autor da Índia, e O Ministério da Felicidade Suprema (2017), ela denunciou as perseguições à casta dos dálitas, as batalhas ecológicas e as bombas nucleares, opinou sobre o conflito em Caxemira e os atentados do 11 de Setembro. Coração Rebelde (Asa, 368 págs., €17,50) reúne seis ensaios numa voz que equilibra raiva, humor, a consciência de ser vista como ameaça “antinacional” e a crença de que “as revoluções podem começar, e muitas vezes começaram, pela leitura.” S.S.C.
7. Adius, de Vasco Gato
Primeiro, uma arrumação: Adius (Abysmo, 152 págs., €15) é o primeiro romance do poeta Vasco Gato, 42 anos e 14 livros revelados, incluindo a arrumação antológica Contra Mim Falo (INCM, 2016). Nele, são usados fulgor e ferramentas da práxis poética: o metal fundente, “as palavras que tiram do mais fundo de nós o mais útil segredo”, parafraseando Cesariny, são-lhe manobras de tateamento da história. Há frases escavadas como que para a linha de um poema (“é um dia para desconfiar do mundo”, “o vento plastifica-me o rosto com a sua indiferença”), convivendo com diálogos urbanos e sublinhados musicais, entre jazz, Mahler ou Tindersticks.
Esta é a história de Viriato Alves, lisboeta ainda não cravado com o ferro dos 40 anos, que lança um primeiro livro e é avesso às “lides de autor sentado” nas “mesas redondas de totens.” “Há quanto tempo tenho vindo a treinar-me na perda?”, interroga-se ele, órfão de pai, com uma família reconstruída e a epifania de um dilema incestuoso por resolver com a “irmã emprestada”. É uma rota imperfeita mas visceral, por entre o amor e a morte, e a recuperação da “hecatombe”, muito pontuada por reflexões (as de Vasco?): a da aversão à escrita como “passadeira rolante que vai debitando títulos e entrevistas e digressões”, e a da fé nas palavras, “eternas espectadoras do magma do mundo”, tradutoras do “transtorno tectónico” das emoções, “artefactos para agir sobre artefactos”. S.S.C.