Marcha-se velozmente pelas virtuosas sete dezenas de páginas, até encontrar, no fim, o manifesto subterrâneo que as anima: “A literatura autoriza tudo, diz-se. Poderia, por conseguinte, fazê-los rodar indefinidamente na escada de Penrose, sem que pudessem nunca mais subir ou descer, obrigados a fazer ao mesmo tempo uma e outra coisa. E, na verdade, é um pouco esse o efeito que os livros têm sobre nós. O tempo das palavras, compacto ou líquido, impenetrável ou cheio de pormenores, denso, alongado, granuloso, petrifica os movimentos, imobiliza todos os que se confrontam com ele.” Citação longa para aplaudir a escrita expressiva, económica, com uma técnica iluminadora própria de quem é também realizador.
Rodando a mira entre literatura e História, Vuillard transfigura esta num organismo narrativo vivo, e com ecos atuais. Em A Guerra dos Pobres minerou um ponto obscurecido do século XVI, ambientado na Reforma Protestante: Thomas Müntzer (1489-1525) liderou um levantamento popular contra Lutero – contra os privilegiados. Armado com literatura (“Aos quinze, já tinha fundado uma liga secreta contra o arcebispo de Magdeburgo e a Igreja de Roma. Lia as Epístolas de Clemente, o Martírio de Policarpo, os Fragmentos de Papias.”), o teólogo alemão prega a tecelões e mineiros, mulheres e miseráveis, os que se inquietam: “Porque é que o deus dos pobres estava tão bizarramente do lado dos ricos, com os ricos, sem cessar?” A “respiração do mundo” acelerou… Em entrevista, o autor disse encontrar ecos desta história na revolta contemporânea dos Coletes Amarelos, e defendeu cultura e leitura como “emancipadoras”. Tudo se confirma ao fechar este livro.
A Guerra dos Pobres (D. Quixote, 79 págs., €9,90) é o segundo livro de Éric Vuillard traduzido em Portugal, depois de A Ordem do Dia (2018), vencedor do Prémio Goncourt, sobre as secretas ligações entre os interesses económicos dos industriais alemães e a ascensão de Hitler ao poder.