Se há género literário que tudo arruma, esse é o da biografia. Há datas, factos, ambição de retrato completo até às ínfimas minúcias. Rapazinho pertence a outra ordem: é um relato autobiográfico torrencial que se permite liberdades romanescas, fluxo de consciência, lirismo, frases sem pontuação que mimetizam a correria da areia na ampulheta. Leia-se este parágrafo performático: “E o Rapazinho, que se fez adulto após uma interminável série de confusões afastamentos transformações instigações cópulas confissões prognósticos alucinações consternações efabulações colaborações revelações aquiescências retificações repercussões equívocos esclarecimentos elucidações simplificações idealizações aspirações rodeios tomadas de consciência radicalizações e libertações, encontrava agora, Rapaz Crescido, uma voz própria e soltava o tesouro secreto das palavras que tinha refreado.”
Lawrence Ferlinghetti é uma lenda. Festejou 100 anos, em março de 2019, lançando estas memórias (ou delírios). A sua vida confunde-se com a História dos EUA, defendeu o poeta Robert Pinsky, no The New York Times: “Ele foi um protagonista único na saga nacional: a luta norte-americana para imaginar uma cultura democrática.” Poeta celebrado, amigo e editor da Beat Generation (William Burroughs, Allen Ginsberg, Jack Kerouac…), fundador da livraria City Lights em São Francisco (“monumento” da contracultura), Ferlinghetti tem “semente materna” oriunda de Monsanto, Portugal.
Órfão de pai aos dois anos, a sua infância é uma arritmia dividida entre orfanatos e mansões, e a vida adulta um exercício existencial celebratório. Foi jornalista e marinheiro (“viu Nagasáqui sete semanas depois de ser lançada a segunda bomba e era o retrato do Inferno, assim se tornou imediatamente pacifista”), viveu na Paris dos artistas e na América do otimismo, “onde a procura da felicidade ainda não se transformara na encarniçada corrida pela dominação mundial da dinheirama”, e hoje… ainda “tresvaria” no “esplêndido cafezinho da vida”.
Rapazinho (Quetzal, 192 págs., €16,60) é o segundo livro de Lawrence Ferlinghetti traduzido, recentemente, em Portugal, após A Poesia Como Arte Insurgente (Relógio D’Água, 2017).