“O mundo não é mais um lugar seguro.” Deixou de o ser “quando os oceanos invadiram a Terra, com as suas ondas viscosas, e empurraram toda a gente para o alto das montanhas”, onde, em “picos envoltos por uma permanente névoa de gases tóxicos”, as pessoas sobrevivem dentro de “rijos fatos herméticos, que impedem o toque, o beijo e o amor”. Qualquer semelhança com um futuro mais ou menos distante poderá ser uma realidade, de facto, mas, por agora, é assim que Adolfo Luxúria Canibal situa o ouvinte na distopia por si imaginada em No Fim Era o Frio.
Ao 12º disco de originais e após cinco anos de ausência dos discos, os Mão Morta voltam a baralhar conceitos e fazem-no com uma mestria ao alcance de poucos. A história, “criada de raiz” pelo vocalista, já tinha estado na base do espetáculo de dança que a banda apresentou este ano, na Guarda e em Aveiro, em parceria com a coreógrafa Inês Jacques. Já a música tem, neste trabalho, uma função muito mais cénica, pelo modo tão sensorial, quase cinematográfico, como desenha ambientes e sublinha emoções. “Queríamos criar na cabeça do ouvinte o cenário visual de uma distopia”, reconheceu Adolfo Luxúria Canibal à VISÃO.
Ao longo de 11 faixas, ou “módulos”, como a banda lhes chama (numa referência aos métodos de composição da música eletrónica aplicados neste “álbum conceptual”), narra-se o estertor de uma sociedade, em jeito de parábola ambiental mas também pessoal, pelo modo como as relações pessoais neste cenário pós-apocalíptico e de perda também são questionadas. Sem refrões, versos ou estrofes, estes módulos não são propriamente canções, mas funcionam muito bem como tal, num disco que deve ser ouvido como quem vê um filme, do princípio ao fim.