Há sempre um erro no meio do caminho, uma ação imponderada que altera a estabilidade, mesmo que frágil, do dia a dia. Os gregos chamavam-lhe hamartia, oportunidade desperdiçada, falha que desencadeia inesperadas peripécias. A protagonista e narradora de A Verdadeira Vida, o primeiro e belo romance da belga Adeline Dieudonné, tentará a todo o custo reparar esse momento central da sua pequena existência. Ela tem apenas 10 anos, vive com o pai, a mãe, o irmão e os muitos “cadáveres” que ocupam uma das divisões lá de casa, troféus de caça do patriarca. Um dia, esquecendo as proibições paternas mas com inocência, compra um gelado com duas bolas e chantilly. Uma bomba para rebentar a paz podre da família.
Fixando-se na base da boa tragédia clássica, que condena uma pessoa boa ao infortúnio, colocando-lhe vários obstáculos até à salvação, Adeline Dieudonné constrói uma narrativa de cortar a respiração. É verdade que o pai será sempre mau, a mãe pouco mais do que desamparo, o irmão, mistério diariamente renovado, e ela, a narradora, uma força da Natureza. E à semelhança de outra tragédia familiar, recentemente ficcionada pelo escritor norte-americano Daniel Magariel, em Um dos Nossos, todo o livro se desenrola em função de um esperado clímax brutal e violento. No entanto, tudo nos comove.
A maestria de Dieudonné sobressai na modelação da voz de uma criança que cresce aos olhos do leitor durante seis verões. É sistematicamente iludida e desiludida, pelos adultos, pela crueldade do mundo e pelo seu corpo que floresce. Porém, nunca desiste. Sonha construir uma máquina do tempo, como no filme, para salvar o irmão do seu mutismo. Mas se tal viagem não é possível, nem o passado se altera, talvez consiga regressar a um outro futuro. A verdadeira vida não pode depender dos outros.