Abre-se o livro ao acaso e a intuição confirma-se. A conclusão, reconheça-se, foi meio oferecida. Não é à toa que se vende um livro em português, mesmo do Brasil, com um glossário. Na sua estreia, Geovani Martins fala de dentro para fora, da favela para o mundo, e isso tem os seus próprios códigos. A forma como sabe usá-los, cruzando-os com falas e expressões de outros territórios, incluindo os literários, só mostra como este será certamente – e já está a ser – um dos primeiros livros mais celebrados dos últimos tempos.
Mas vamos por partes, porque Geovani Martins é mesmo um fenómeno curioso. Ele vem de Bangu, da zona oeste do Rio de Janeiro, e cresceu no Vidigal, bairro mais conhecido pela sua favela, ao lado do Leblon, enclave entre a dureza da sociedade e as graças da Natureza. Nasceu em 1991 e fez um pouco de tudo, em trabalhos de verão e obrigação. O caminho da escrita revelou-se na adolescência, quando se acentuou o contraste entre os muitos Brasis. É desse choque que nascem os seus contos. As oficinas da Festa Literária das Periferias do Rio de Janeiro foram o laboratório destes textos, que chegaram à Companhia das Letras através de António Prata, o primeiro de muitos escritores brasileiros a saudar a “força inédita” desta “nova voz”.
Em O Sol na Cabeça ecoa o olhar de Malagueta, Perus e Bacanaço, de João Antônio, autor brasileiro que também se revelou, com enorme sucesso, com 20 e poucos anos. É a mesma simpatia pelas figuras marginalizadas, pelo botecos e paixões frustradas, pelo curso da vida invariavelmente interrompido. Só que o Brasil de agora é muito diferente do da década de 60. Geovani Martins é mais violento, tem mais droga e mais crack; é “bad” e “baca”, “surtado” e “rolé”, “futum” e “xarpi”, num retrato impiedoso e apaixonado do Rio de Janeiro ocultado pelas intervenções do BOPE. Prosa de elite.