1. O Macaco Bêbedo Foi à Ópera, de Afonso Cruz
Isto anda tudo ligado, poder-se-ia pensar perante esta frase: “Não sei se Deus deixou a marca do seu copo de whisky no espaço, um pouco como quem deixa aquela auréola incómoda na mesinha da sala e ouvirá seguramente a repreensão da tia sobre a falta de uso daquele objecto incompreendido, chamado base para copos.” Afonso Cruz, já se sabe, escreveu o romance Jesus Cristo Bebia Cerveja (2012), já muito falou sobre a vocação para a destilação e fermentação doméstica, tem gosto enciclopédico e é bom contador de histórias. Em O Macaco Bêbedo Foi à Ópera, da Embriaguez à Civilização (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 80 págs., €3,50), ele usa esta técnica de mixologia para servir, não uma bem-comportada cronologia histórica da cerveja, vinho e demais líquidos alteradores de consciências, mas antes um borbulhar ensaístico livre (diríamos que à maneira de quem já bebeu um ou outro copo).
2. A Travessia de Benjamin, de Jay Parini
Certa vez, Jay Parini perguntou ao amigo Gore Vidal se era possível ter duas personagens a discutir sobre o existencialista dinamarquês Kierkegaard ao longo de 12 páginas de um romance sem perder os leitores. O autor de Juliano (1990) e outros tomos canónicos da literatura norte-americana respondeu-lhe: “É possível, se essas duas personagens estiverem sentadas num vagão ferroviário, e o leitor souber que há uma bomba escondida debaixo do assento.” Anos mais tarde, Parini disse esperar que os nazis fossem a bomba em A Travessia de Benjamin (Elsinore, 366 págs., €20,99). Entende-se: este belo romance é dedicado aos últimos dias do ensaísta, crítico literário e filósofo judeu alemão Walter Benjamin (1892-1940), em fuga pelos Pirenéus, que se suicidou em Portbou, por medo de que a polícia espanhola o entregasse à Gestapo. Dele, publicou-se agora, em Portugal, um volume que marca um big bang da modernidade: o fragmentário As Passagens de Paris (Assírio & Alvim), leitura histórico-filosófica habitada por Baudelaire.
4. Momentos Estelares da Humanidade, de Stefan Zweig
É contraditório que um autor sensível à grandeza tenha soçobrado ao cansaço (a ameaça nazi levou-o ao exílio brasileiro e ao suicídio). Mas Momentos Estelares da Humanidade (Assírio & Alvim, 272 págs., €16,60) é um compêndio esperançoso, tributo ao génio humano, manifestado, por exemplo, na determinação messiânica de Núñez de Balboa ao descobrir o Pacífico em 1513, na “ressurreição” musical do debilitado Händel em 1741 ou na epifania de Goethe numa viagem de carruagem.
4. O Grande Compêndio de Audiogésicos da Dra. Ana Correia, de Ana Markl
Da rádio para o papel, estas prescrições médicas ganham estatuto de pequenas crónicas (“literatura inclusa”?) e a música fica em segundo plano. Desde 2015, Ana Markl (ou, melhor, a dra. Ana Correia) apresenta na Antena 3 esta espécie de consultório à distância. Para qualquer maleita, há uma canção indicada que pode funcionar como cura ou, pelo menos, como “audiogésico”. “Défice de motivação matinal”? Talvez Today, dos Smashing Pumpkins; “Desorientação crónica?”, prescreve–se No Caminho do Bem, de Tim Maia; “Solidão voluntária aguda”? I Married Myself, dos Sparks… Remédios “universais, eficazes e praticamente sem efeitos secundários”. O prefácio deste Compêndio… (IN, 160 págs., €16,99) é de Nuno Markl, irmão de Ana, com um tom de enternecedora cumplicidade. P.D.A.
