O cinema já tinha dado o rosto de Marcello Mastroianni a este Pereira, jornalista acomodado, alheado, católico obcecado com a ressurreição da carne – sobretudo quando esta ameaça ser a tormenta de um corpo volumoso para toda a eternidade. No entanto, aqui, o traço aparentemente leve, anguloso, fantasista e algo rétro que o desenhador Pierre-Henry Gomont aplica ao personagem de Antonio Tabucchi aguça-lhe as contradições e adoça-lhe os gestos. Fato claro, bigodinho de ator antigo, figura rotunda, a destilar suor, lirismo e hesitação, este é um anti-herói cheio de dúvidas e cobardias, que, num crescendo, adotará um gesto redentor e heroico.
Portugal sufoca, sob o jugo do Estado Novo e da PIDE em 1938. O solitário Pereira, intelectual de serviço num jornal da capital, mantém deliberada distância das tensões políticas à sua volta – um jornalista que faz de conta que não o é. Viúvo inconsolável, tem por únicas companhias o retrato da esposa morta e a sua própria consciência, mantendo conversas imaginárias com ambas (sequências desenhadas graciosamente). Há ainda um padre que lhe pergunta em que mundo vive ele, já que se mostra cego perante a violência que acontece à sua porta, e uma porteira delatora.
Este entorpecimento existencial é sacudido por Monteiro Rossi, um idealista que arrisca contratar para escrever obituários higienizados de escritores, e que acabará por espoletar nele a crise moral reprimida. Uma caminhada até ao fim da noite salazarista, fiel ao espírito do romance, desenhada com sensibilidade, bom senso e mão que gosta do pormenor – as fachadas dos edifícios, a planície de telhados, as pinceladas que evocam a luz mediterrânica, as cores emocionais, a silhueta tragicómica de Pereira que ora pesa ora flutua sobre as páginas…