Não há sonho que não possa dar numa grande maka (confusão, conflito, discórdia). Não há utopia que se preze sem os seus mambos (problemas) e dissabores. Tal como não há angolano de corpo e alma que não se saiba rir das suas desgraças, como nota outro ilustre mwangolê (angolano) logo no prefácio, Pepetela. E é em plena África Austral lusófona que nos encontramos nesta ficção.
A Angola deste escritor serôdio – na verdade, já tinha editado alguns livros didáticos nos anos pós-independência – aparece sob o olhar de quem contribuiu para que ela existisse, como país independente, utópico, e promessa adiada de potência daquela região africana. Júlio de Almeida, pai do escritor Ondjaki, é uma figura histórica do processo de emancipação angolana do jugo colonial português. Ele foi o comandante Juju nos tempos da guerrilha contra o exército colonial, e disse presente nos primeiros anos do jovem país enquanto deputado do MPLA.
Mas desiludiu-se. A Angola desses sonhos desvanecidos já foi narrada noutras ocasiões, por penas diferentes. Aqui surge na história de duas personagens que se cruzam sem querer, um ex-guerrilheiro convertido em explicador de matemática e uma mulher cuja mãe foi morta numa emboscada dos portugueses. Quis o acaso (e o mundo é feito deles, nota o protagonista) que se encontrassem anos mais tarde, e partilhassem recordações. Ela é o rosto da nova Angola, recém- -convertida ao mercado, e dirige uma agência funerária, a ironicamente chamada Vaicomdeus, SARL.
Tudo é feito de melancolia e ironia, e vice-versa, nesta obra. O que nos assalta, porém, é uma capacidade de reflexão que mistura o humor com a lucidez, como se fossem um só. O protagonista, Eugénio, resume a dado passo a sua passagem pelo mundo. Ou, pelo menos, uma etapa importante dela: “É facto que passei doze anos da minha vida na guerrilha”, diz à sua interlocutora, “mas não me considero chutado para canto, só que eu não aceitei e não aceito jogar em determinadas equipas; há muitas coisas que não consigo aprender a fazer”.
Vaicomdeus, SARL (Caminho, 184 págs., €16,90) é a primeira obra de ficção de Júlio de Almeida e narra, com desencanto, a passagem da Angola das lutas de libertação para os primeiros anos da independência, um pouco antes de chegar o fim da guerra civil.