A premissa embala-nos na direção de um thriller, mas a estranha missão que é imposta ao protagonista desta história desvia-nos por outros caminhos. O autor dispõe poucas peças no tabuleiro do jogo logo no prólogo: esta é a história de Erik Gould, um jazzman que respira música por todos os poros, e talvez a tenha até por dentro, na própria alma. A CIA estuda-o e, ao fim de inúmeros relatórios, chega à conclusão de que ele é a pessoa ideal para uma missão com o nome de código Jazz Ambassadors, urdida para levar ao bloco de Leste comunista a influência libertadora ocidental através da música. Essa operação diplomática, expliquemos desde já, existiu mesmo, e foi prolongada para lá da Guerra Fria.
Na verdade, Afonso Cruz engana-nos com esta missão e, em Nem Todas as Baleias Voam, acaba por nos guiar para temas como o amor e a morte, a arte ou a solidão. Gould partilha com o filho, Tristan, um dom insólito: a sinestesia. A ele dá-lhe para ver música por todo o lado e senti-la com outros sentidos, atribuindo cores às notas. O filho vê os sentimentos, os seus e os dos que o rodeiam, na forma de pessoas. Outras intrigas se cruzam numa teia de considerável imaginação. Erik lamenta o desaparecimento súbito do amor da sua vida, a russa Natasha, mãe de Tristan. Na verdade, Natasha será o móbil de um grande complô que vai acompanhar a missão do músico ao Leste…
Neste ponto é preciso fazer uma travagem e parar com os spoilers. O melhor é ficar com um pequeno exemplo da narrativa, quando os agentes da CIA que analisam as potencialidades de Gould para vir a ser um “embaixador do jazz” se deparam com uma das muitas surpresas que o protagonista tem para lhes dar. O músico tinha por hábito cortar-se para se infligir dor. Um dos agentes fala do seu corpo coberto de cicatrizes: “A meu ver”, diz ele ao superior, “completamente escusadas”. Fazia-o, continua o espião, “para se libertar da música”. O outro, perplexo, quis saber mais. A resposta, bem ao estilo de Afonso Cruz, é insólita: “Achava que estava a abarrotar de música, que ela já não lhe cabia no corpo, e cortava-se como quem faz uma sangria, para se libertar.”
Nem Todas As Baleias Voam (Companhia das Letras, 280 págs., €16,90) marca o regresso ao romance de Afonso Cruz. Por estes dias, chega também às livrarias um novo volume da sua Enciclopédia da Estória Universal: Mil Anos de Esquecimento