Nem de cantar, nem de escrever, nem de qualquer outra profissão. “Não tenhamos vergonha”, canta Kimi Djabaté. “Não tenhamos vergonha de quem somos”. Numa palavra (em crioulo): Kanamalu. E assim, no título e num dos seus temas mais fortes, fica vincado o espírito do terceiro álbum do músico guineense, que desde 2009 tem vindo a afirmar um dos percursos mais estimulantes das sonoridades lusófonas (e não só). Ao correr de 12 faixas, sobressaem evocações familiares, tributos a ensinamentos ancestrais, críticas a desentendimentos, votos de um amanhã diferente. Para Djabaté, a música é a expressão da sua cidadania. Uma marca identitária.
Não podia, aliás, ser de outra forma. Além de ter nascido no ano da independência da Guiné-Bissau, em 1975, Djabaté é natural de Tabatô, aldeia onde todos os habitantes são músicos. Desde os três anos que cumpre o destino traçado pelos seus antepassados, ligados à música desde o século XIII. Há 500 anos, saíram do Mali em busca de melhor sorte. Com eles, também chegou à Guiné-Bissau a cultura Mandinga, comum a inúmeros artistas da África Ocidental e um dos sons mais destacados das Músicas do Mundo.
É essa exuberante tradição tribal que fervilha em cada tema de Kanamalu. Quente, densa e versátil, a voz de Kimi Djabaté é amparada por um rendilhado harmonioso que resulta da conjugação de instrumentos diversos. Num plano, os agudos da kora e do balafon, imagens de marca de Tabatô. Noutro, a cadência dos djembé e das congas. E, no fim, os coros de Maritza Bossé e Soraia Delgado. Entre os vários registos, espaço e tempo para o improviso, a revisitação e a glosa, em músicas que se alongam sem nunca se repetirem. As rimas do crioulo guineense emprestam a cada canção a sua força e espessura, num colorido que se transforma em oração a um povo. “Filhos da Guiné, vamos-nos unir. Vamos dar o respeito à Democracia. Para tirar o país das dificuldades”. Também pela música. E sempre sem vergonha.
Em Kanamalu, todas as músicas são cantadas em crioulo guineense, menos a última, Djaraby-lé, que conta com a participação especial de Susana Travassos.