“São sem conta e antigas as razões de não se gostar de um filho, abundam no Velho Tratamento, na mitologia grega, com pouco esforço as encontramos à nossa volta.” Os fios de paternidades tortas e de arremedos edipianos, as secreções escorridas por ódios de sangue e de sordidez, atravessam barrigas de gravidezes, paredes de quartos, muros sociais entre ricos e pobres, fronteiras de países e décadas, neste romance de J. Rentes de Carvalho, O Meças.
Tudo começa lá atrás, num “pater familias à antiga” que devasta tudo, à força de pancada e de preconceito, gerando ruínas futuras. “Deixado a mim próprio, cedo descobri que melhor caminharia sozinho, não me estavam na natureza laços nem cadilhos, pertenças ou aderenças, a memória de meu Pai desencadeando no íntimo reações extremas, ora de raiva e asco, ora de um medo infantil, potente e permanente como uma maldição.” É a confissão de um filho que, em horas mortas, entretém-se a descobrir “bizarras semelhanças” entre Portugal e o progenitor. “Via-os ambos autoritários, inconsequentes, injustos, não suportavam críticas, reagiam à bruta contra o que lhes parecesse ofensa, tinham-se a si próprios em alta estima, era patética a sua arrogância.” Um País recordado até no exílio: “Dói (…) quando nos demonstram piedade pela pouca sorte de termos nascido num País de ternura, de tanta gentileza, mas ser ele há séculos coito de quadrilhas que pela força e o embuste chamam a si a lei, a impõem a uma gente que, amedrontada e pobre, se verga ao jugo e muda em subserviência o seu natural carinho.”
Tudo isto gravita no temível e truculento Meças, emigrante regressado da Alemanha, assombrado por memórias de abusos e por maus vinhos, que repercutirá prepotências no filho desprezado e na nora cobiçada (um iPhone branco, será a vingança dela…). Vital, violento, implacável, lúcido e aquiliniano, virtuoso no vocabulário popular e numa escrita que alavanca a tradição oral, O Meças é um livro do desassossego.
O Meças (Quetzal, 184 págs., €15,50), bela edição, junta-se aos doze livros já publicados do autor, radicado na Holanda, distribuídos por vários géneros: romance, ensaio, memórias e crónicas