A força tremenda da água a correr no vale da Ribeira da Carpinteira, onde outrora se concentrava a indústria de lanifícios da Covilhã, abafa as conversas. É preciso entrar no New Hand Lab – Fábrica António Estrela/Júlio Afonso (um tributo ao primeiro e ao último proprietário) para ouvir os autores que, desde 2013, mantêm o edifício vivo, usando a lã como fio condutor. Há designers, artesãos, pintores, escultores, um fotógrafo e até uma banda de jazz residente, capaz de incorporar nas suas composições musicais os sons perdidos da antiga unidade fabril. “Disponibilizo o espaço e eles partilham o conhecimento”, conta Francisco Afonso (filho de Júlio), o responsável pelo projeto.
“Quem cá está, veste a camisola (de lã)”, brinca Miguel Gigante, o designer responsável pelo Atelier de Burel, que ali desenvolve parte da sua coleção de vestuário e de decoração, dando uma estética mais contemporânea ao tecido. Naquela que era a sala de tecelagem, está agora uma loja com uma amostra do trabalho destes criativos, quase todos com uma ligação familiar à indústria de lanifícios. Pelo restante edifício, estão espalhados os ateliês. As parcerias entre os ocupantes surgem naturalmente, seja com a curta-metragem A Paixão do Operário, que João Inácio filmou naquele cenário, seja com as fotos que João Pedro Silva fez dos bonecos Petrus, nascidos das mãos da artesã Ana Almeida a partir dos fios de lã ali armazenados. “Todos ganham com esta colaboração”, concordam. Na próxima primavera, deverão avançar as visitas guiadas pelas diferentes áreas, contando também a história daquela que foi, provavelmente, a mais antiga fábrica de lanifícios da Covilhã, fundada em 1855, sobre as ruínas de uma manufatura do século XVII. Desde a abertura do New Hand Lab, por ali já passaram desfiles de moda, espetáculos de dança, concertos e colóquios. “É a melhor forma de preservar estas memórias”, sublinha Francisco Afonso. E de tecer um futuro.
Um festival de “street art”
“Este hotel só podia existir aqui, na cidade da lã”, diz Vasco Pinho, o arquiteto responsável pela transformação do antigo Hotel Turismo da Covilhã em Puralã – Wool Valley Hotel & Spa, reaberto no final de 2016. Pertencente ao grupo Natura IMB Hotels há mais de 20 anos, precisava de se atualizar e de apresentar uma versão mais autêntica, com fortes ligações à região. Algo expresso no mural artístico da autoria de Fátima Pereira Nina, onde se conta a história da Covilhã ao longo dos séculos. A madeira, o xisto e as lãs estão agora por todo o edifício, tornando-o mais acolhedor. “Por dentro, foi completamente demolido”, adianta Luís Veiga, o administrador. “Era importante criar uma atmosfera mais informal.” A ideia à volta dos lanifícios reflete-se não só na decoração mas também em pacotes turísticos que envolvem visitas a fábricas têxteis, em workshops de tricô ou em rituais da lã no spa.
Esta ligação ao passado industrial vê-se por toda a cidade. Ao caminhar pelas ruas do centro histórico, surgem as figuras do pastor e do operário de lanifícios, em tons de azul, na fachada de uma casa, a contrastar com os painéis de azulejo Viúva Lamego que cobrem a Igreja de Santa Maria. As obras do Arm Collective, a dupla formada pelos artistas Mar e Ram, marcaram o começo do Woolfest, o festival de arte urbana da Covilhã, em 2011. “Essa primeira intervenção foi logo a abrir, mas a reação das pessoas, mesmo das mais velhas, foi muito boa, porque era uma zona esquecida e agora muitos querem visitá-la”, conta o arquiteto Pedro Rodrigues, da organização, que decidiu regressar à Covilhã, sua terra natal. Atualmente, há 12 obras (oficiais, porque outras nasceram fora do Woolfest) espalhadas pelo centro histórico, assinadas por Vhils, Tamara Alves, Bordallo II, Samina, Pantónio, ±MAISMENOS±, Mr. Dheo, entre outros nomes conhecidos da street art. Com alguns temas relacionados com a região, como o envelhecimento da população, a pastorícia ou os têxteis. “Funciona como um roteiro, levando os visitantes a conhecer também a cidade, facilmente percorrida a pé”, acrescenta Pedro.
Entretanto, no final de 2015, membros da organização do Woolfest abriram A Tentadora, convertendo uma antiga mercearia do centro histórico em espaço de cowork, loja e, brevemente, galeria. Pedro Rodrigues e a mulher, Elisabet Carceller, a museógrafa catalã que conheceu durante o Erasmus, dão corda às atividades culturais ali desenvolvidas, entre as quais projeção de filmes, palestras, workshops ou lançamentos de livros. Na loja, que manteve a pátina de outros tempos, destacam o artesanato, peças de design, brinquedos, produtos gourmet e cosmética, feitos na região.
Subindo um pouco a rua íngreme, chega-se ao Cinco Atelier, da arquiteta Joana Sena (também ela de regresso às origens) e da designer Ana Gonçalo. Ali põem em prática os seus projetos de decoração e expõem artigos, de ambas e de outros, nomeadamente as meadas de lã fiadas à mão com a marca Cibo de Terra. Aos fins de semana e em período pós-laboral, fazem workshops, desde macramé a teatro de sombras. Nas redes sociais, onde divulgam as atividades, a hashtag #Há vida atrás da câmara#, associada à localização, revela a dinâmica imprimida.
No sentido oposto, a descer, mas também nas traseiras dos Paços do Concelho, está A Laranjinha, uma taberna aberta há dois anos numa casa quinhentista, com decoração tosca, onde há sempre fado a tocar. Os petiscos apostam nos produtos endógenos, como os bombons de fumeiro da Beira com molho de maçã, o bife à pastor, o ensopado de javali ou os ovos rotos com presunto serrano.
Os sabores da Beira
A caminho de Manteigas, há outras boas paragens para consolar o estômago, na aldeia de Valhelhas, onde se concentram dois dos melhores restaurantes da região: o Soadro do Zêzere e o Vallecula, um de cada lado da estrada. Os sabores da Beira têm ali dignos representantes, apostando na qualidade dos ingredientes e na simplicidade da confeção. O primeiro, aberto em 1975 pelos pais de Paulo Carvalho (a mãe continua a liderar a cozinha), pode não ter merecido tanta atenção da crítica gastronómica, mas já conquistou comensais de todo o País (as reservas são aconselháveis), com a sua vitela no tacho, a sopa seca (um cozido à portuguesa mais elaborado), o cabrito assado, a truta frita em escabeche ou a cabidela de galinha do campo.
Continuando a seguir o Zêzere, à entrada de Manteigas, para quem queira queimar calorias, foi construído pelo município um centro de btt (a inauguração oficial é a 4 de março), no Parque da Várzea, junto ao rio. Dali partem (e terminam) cinco percursos de montanha circulares, devidamente sinalizados, com diferentes graus de dificuldade (tanto para famílias como para atletas), num total de 150 quilómetros. O pequeno edifício tem um ponto de lavagem de bicicletas, jogo de ferramentas e balneários.
Para dormir, no concelho, existem, sobretudo, unidades de turismo rural, como é o caso do Serra Vale, no centro da vila, e a Casa Cerro da Correia, já a 900 metros de altitude, com uma vista magnífica, no enfiamento do “U” perfeito formado pelo vale glaciar. Não percamos, porém, o fio à meada, porque a vila também cresceu à volta da lã, como se explica no Centro Interpretativo do Vale Glaciar do Zêzere, aberto em 2013 numa antiga casa de guardas-florestais. Ali bem perto, estão as duas resistentes à crise da indústria de lanifícios: a Ecolã e a Burel Factory, capazes de transformar o burel, um tecido artesanal português outrora usado por pastores, num produto da moda, apreciado em todo o mundo. As fábricas têm lojas abertas ao público e visitas guiadas, onde se revelam todos os passos do processo de fabrico e se descobrem máquinas centenárias. Se a Ecolã, fundada no início do século passado, já vai na quarta geração, a Burel Factory fez em 2013 uma recuperação notável das instalações de uma unidade falida, procurando combinar a arte e o saber dos tecelões que restavam na vila com a originalidade da equipa de designers. Com ambas, a reinvenção do tecido mais tradicional da indústria de lanifícios da serra da Estrela é uma realidade. Com história, alma e inovação.
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