Apesar da pompa e circunstância que o almoço do Domingo de Páscoa pede, este ano celebrado a 4 de abril, o chefe Bertílio Gomes arriscou e recriou a Última Ceia numa ementa de seis petiscos para partilhar, um número inspirado na estrela de David, símbolo do povo hebraico. Já na nona edição, esta iniciativa do Canal História – nos últimos anos tem desafiado vários chefes portugueses a recriar uma das refeições mais referenciadas na História – passa na televisão (emissão até domingo, 4), mas em vez de a ementa ser servida no restaurante, este ano será preparada de forma a ser levada para casa, até domingo, 4 de abril.
Foi precisamente em casa, à mesa, que provámos o que o chefe da Taberna Albricoque, aberta há quase dois anos em Santa Apolónia, em Lisboa, preparou. Bertílio considera este “um momento de esperança e renovação”, por isso quis que o seu menu assentasse nos princípios da simplicidade, da autenticidade e da sustentabilidade. Para tal, inspirou-se nos ingredientes e na forma de comer de há milhares de anos, percebendo que “havia muitas parecenças com a nossa gastronomia”.
Apesar de ter nascido na Margem Sul, Bertílio Gomes tem as suas raízes em Albufeira e em Loulé, no Algarve, e isso nota-se nas suas ideias e nos pratos. Usou pouquíssima proteína animal (“um ensinamento para os dias de hoje”) e abusou de leguminosas, legumes e cereais. “Faz muito sentido olhar para trás para seguir em frente. A ementa vai ao encontro do que as pessoas procuram atualmente, uma comida mais vegetal. Temos de aprender e de ir beber à sabedoria e ao conhecimento do passado, porque os territórios dão-nos quase sempre tudo aquilo de que precisamos.”
Além da Bíblia, o chefe consultou livros sobre a história da alimentação ao longo dos séculos e a obra 6000 Anos de Pão, de Heinrich Eduard Jacob. Demorou entre uma semana e dez dias para idealizar o menu, em que fez questão de usar técnicas antigas como a demolha, a salmoura ou a fermentação.
Sendo o pão e o vinho os dois únicos ingredientes que se tem a certeza de que estavam na mesa da Última Ceia, Bertílio fez um pão ázimo para acompanhar os petiscos e assim poderem ser comidos à mão. A utilização do vinho é uma surpresa, como pudemos comprovar mais à frente. Nesta altura do ano, com as temperaturas mais amenas, já se comem bem estes pratos frios, à exceção das lentilhas e das favas que devem ser aquecidas, mas não em demasia.
Refeição colorida e sustentável
Comecemos pela morcela vegetal, que ganha este nome pela sua cor escura, a lembrar o sangue, e pelo sabor do tempero dos cominhos. De resto, é uma salada de cenouras roxas assadas (tradicional do Algarve, fonte de alimentação de dezembro a março) e azeitonas (fruto bíblico). As cores continuam a abrir o apetite. Segue-se o tártaro de beterraba com grão e ervas amargas (agrião, azedas, dente-de-leão e chicória) de um cor-de-rosa vibrante. O toque picante das folhas verdes é uma delícia, espicaça o paladar e deixa-nos alerta para o que se segue.
Seguiu-se um petisco salgado e frio, feito com peixe (única proteína animal da refeição), símbolo do cristianismo, visto alguns apóstolos terem sido pescadores. O tártaro de carapau com figos secos e amêndoas é muito diferente e interessante porque mistura a cura conseguida em salmoura com a doçura dos figos secos e a crocância da amêndoa, os frutos do seu Algarve. E Bertílio não hesitou em utilizá-los, sendo a figueira e a amendoeira algumas das árvores referenciadas na Bíblia.
Para confecionar o primeiro dos pratos quentes, lentilhas com queijo de cabra, tomate confit e couve kale, o chefe foi buscar a cataplana, recipiente tradicional da gastronomia algarvia. À leguminosa preferiu juntar queijo de cabra em vez de carne, fosse borrego ou cabrito, uma vez que a cabra era sobretudo criada para lhe retirar o leite. Em tempo de favinhas da primavera, a sua mistura com o trigo, servida em pétalas de cebola assada, é um belo final. Mas falta ainda a sobremesa – e esta tem mesmo de ser saboreada. O “petisco doce” é uma rabanada feita a partir do folar típico do Sul do País (mais denso, com massa de pão e tempero de erva-doce), frutos vermelhos e um sorvete de vinho tinto (ei-lo!), preparado com uma infusão de especiarias (cardamomo, estrela de anis, canela, coentros em grão) – ganha um bordeaux-vivo e um sabor superior.
Tudo isto chega embalado em caixas biodegradáveis de polpa de cana-de-açúcar. Uma refeição saborosa, diversificada e muito colorida do princípio ao fim, como manda a roda dos alimentos.
Taberna Albricoque > R. dos Caminhos de Ferro, 98, Lisboa > T. 96 292 2338, 21 886 1182 > Menu Última Ceia até 4 abr > Encomendar 24h antes, em takeaway (12h-20h) ou entregue em casa > €40/2 pax sem vinho