Entramos na Oficina da Esquina, junto a Sete Rios, a enorme fábrica de onde sai o pão do mítico Mário Rolando, logo pela manhã, e percebemos imediatamente que o chefe Vítor Sobral está “Com os Azeites”. Mesmo antes de o vermos, em muito mais osso que carne, culpa de uma rigorosa dieta que anda a seguir, descobrimo-lo na capa do seu 24º livro, sorridente, com as mãos a prenderem uma bonita garrafa de azeite. A obra é de grande porte, pesada, e promete mais de 130 receitas “com sabor a azeite português” – haveremos de provar algumas delas, mais tarde. Lá dentro, há ainda muito palavreado sobre este líquido extraído da azeitona. E é então que tomamos conhecimento de alguns mitos, porque os portugueses ainda sabem muito pouco sobre esta gordura de eleição.
MITO 1: Quanto menor for a acidez, melhor será o azeite
Embora este seja um dos parâmetros de qualidade, nem vale a pena olhar para o grau de acidez, explica o autor do livro, porque a diferença entre 0,1 e 0,7% só é detetada em laboratório. Mais importante será escolher sempre um Virgem Extra, para qualquer tipo de utilização, porque então teremos a certeza de que não é refinado e que a sua acidez não excederá os 0,8 por cento.
Faça-se aqui um parêntesis para pôr as cartas na mesa: o livro do chefe é patrocinado pela marca Oliveira da Serra, pelo que todas as variantes que provaremos hoje serão dessa conhecida empresa portuguesa multipremiada.
Molhemos então umas boas fatias de pão em dois tipos de azeite – um verde e um maduro. Em cima da mesa de madeira, salpicada de farinha que nos pinta a todos de branco, há quatro pães, qual deles o melhor. Depois de sabermos que se trata de farinhas selecionadas, que se usa o grão completo, que há entre 20 a 30% de massa-mãe e a fermentação é longa, percebemos porque não nos sentimos inchados depois de termos ensopado vezes de mais o pão de alfarroba e bolota numa edição limitada de azeite da primeira colheita. “É fresco, de notas verdes e entrada suave na boca” – está explicado. Também há a versão gourmet, disponível todo o ano, com mais corpo, e fatias do novíssimo pão de cerveja e de outro de sementes e nozes. Mas nós fixámo-nos naquela ligação dos deuses.
MITO 2: A cor do azeite determina a sua qualidade
“A cor só tem a ver com o estado de maturação da azeitona, que pode variar entre o verde e o preto”, explica José Gouveia, a quem todos tratam por “professor”, e quando o entusiasmo fala mais alto, podem mesmo apelidá-lo de Papa do azeite. Na verdade, é o responsável, há 15 anos, por cursos de azeite no Instituto de Agronomia, aptos para toda a gente, de curiosos a profissionais.
O especialista acrescenta ainda, e tome nota que nós não andamos por aqui sempre, que as azeitonas pretas nunca podem ser luzidias e rijas. Se isso acontecer, é porque foram amadurecidas artificialmente, “com soda cáustica”, afiança. As negras são as mais maduras, logo nunca podem ser duras, e as verdes as mais saudáveis.
Estes ensinamentos são passados enquanto provamos uns estaladiços camarões fritos em azeite frutado verde, com gengibre e salsa. Logo a seguir, chega-nos às mãos uma salada de polvo com batata-doce e hortelã, desta vez banhada em azeite frutado maduro. Damos mais um gole no espumante Quinta do Rol e já podemos passar para outra Esquina.
Há um mini-bus à nossa espera, mas preferimos caminhar pelo bairro de Campo de Ourique que alberga três Esquinas de Vítor Sobral. E assim chegamos à Peixaria, quase ao mesmo tempo que os mais preguiçosos.
MITO 3: O azeite melhora com o tempo, como o vinho
Para repor a verdade, há que inverter a frase, totalmente. O melhor azeite é o tal verde em que molhámos o pão sem vergonha, o que sai da primeira extração da azeitona. Lição aprendida e seguimos adiante para uns chocos fritos, obviamente em azeite, e muito bem acompanhados de uma cebolada com berbigão. E ainda temos gula para o atum marinado com manga e poejo.
Para ajudar a digerir estes dois deliciosos petiscos, servidos em mesas altas de tampo de mármore, há cerveja Bohemia, que cai mesmo bem com as iguarias. E espreitamos as receitas no livro, com esperança de conseguirmos replicá-las em casa, seguindo as indicações do chefe, um enorme defensor da comida tradicional portuguesa.
Como o Talho da Esquina, a mais recente aposta de Vítor Sobral, fica fora do bairro, voltamos a entrar no autocarro. O caminho leva-nos até à Assembleia da República, que já tem uma enorme árvore de Natal à porta, registe-se. É então que nos interrogamos: Em que zona de Lisboa ficará a Esquina do Bacalhau, o próximo – e último? – projeto deste pequeno império da restauração?
MITO 4: O azeite quando está opaco, está estragado.
Nada disso. Este líquido solidifica a temperaturas baixas, tornando-se espesso e opaco. Mas volta ao seu estado natural, translúcido, assim que sente mais calor. E neste processo não perde nenhuma das suas características. Aconselha-se, ainda assim, que ele seja guardado num ambiente ameno e com pouca luz.
No Talho da Esquina, por entre enormes peças de carne, todas etiquetadas para que se conheça a sua origem (sempre nacional, até o Angus é português), paramos para apreciar a obra que o artista Bordallo II criou para este restaurante e que ocupa as paredes quase na totalidade. É feita de lixo, claro está, e retrata vários ingredientes da culinária portuguesa, como a cenoura e o tomate. Por acaso, é mesmo uma cenoura em pickle que acompanha o pedaço de carne de vaca de trabalho arouquesa maturada (60 dias) que nos servem, com um remate de azeite seleção de ouro. Do que gostamos mesmo é dos milhos de maracujá em cubinhos que fazem as vezes de guarnição a umas espetadas à la madeirense.
O vinho é um tinto À Parte, de 2015, biológico e sem grande manipulação na adega, que Vítor Sobral classifica de “nem parece biológico”. Concordamos e nunca dizemos que não quando nos perguntam se queremos mais deste néctar do Alentejo, uma pequena colheita, que só está disponível em restaurantes.
MITO 5: O azeite não é bom para fritar.
Apesar de não termos este hábito, talvez por ser uma opção mais cara, trata-se da gordura mais adequada para a fritura, se não for misturado com outros óleos nem usada mais do que quatro ou cinco vezes. “Em condições adequadas de temperatura, sem sobreaquecimento, o mesmo não sofre alterações estruturais substanciais e mantém o valor nutricional, não só devido aos antioxidantes, mas também aos elevados níveis de ácido oleico.” São este tipo de informações que podemos ir buscar ao livro agora lançado, antes de nos atirarmos às receitas.
A conversa vai lançada e o estômago satisfeito. Mas a moleza que se cola a uma barrigada, com álcool à mistura, pede um café, não é chefe? É com esta necessidade em mente que nos levam à Padaria da Esquina, mesmo em frente ao mercado de Campo de Ourique, onde se pode comprar tudo aquilo que é fabricado perto de Sete Rios, sob a batuta do padeiro Mário Rolando. “O pão que fazemos é próbiótoco. Há anos que à noite só como isso e, aos 50 anos, posso dizer que tenho uma boa saúde intestinal”, avisara-nos pela manhã, com as mãos esbranquiçadas pela farinha.
Mas a esta hora, e depois de tudo o que provámos, não há espaço para pão. Bebemos o café, junto a um pudim de azeite, e já só cheiramos o aroma a especiarias que sai do bolo de cenoura, que, diz quem provou, sabe a Natal. Ambas as sobremesas são feitas com azeite de primeira colheita e estão reveladas no livro.
Antes de sairmos, com a cabeça livre de mitos, é impossível resistir a este balcão. No saco de papel, guardamos então os croissants para os meninos-matulões lá de casa e um pão de alfarroba que, prometemos, será devidamente mergulhado num bom azeite.